Opinião

A 4 Mãos: Palavra-chave: reformar

Uma rubrica de Opinião escrita a quatro mãos por Maria Moreira Rato e Marcos Melo

Marcos Melo (MM): A OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) apresentou, há dias, as conclusões de um estudo, encomendado pelo Governo, que se debruçou sobre o estado da arte do Ensino Superior e da Ciência portugueses. É de sublinhar que a última avaliação deste tipo aconteceu há uma década. Dessa resultou o RJIES (Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior), documento que regula, até hoje, a atuação das Universidades e dos Politécnicos.

A avaliação, levada, agora, a cabo pela OCDE, apresenta algumas conclusões, das quais destaco:

  1. Até 2030, o país deverá duplicar o investimento público dirigido ao Ensino Superior e à Ciência (em 2018, o Orçamento do Estado reservou uma fatia de 1.400 milhões de euros para o sector).
  2. Por sua vez, nos próximos 12 anos, as empresas deverão quadruplicar o investimento em Investigação e Desenvolvimento (I&D).
  3. Dever-se-á aplicar uma nova fórmula de financiamento para o Ensino Superior.
  4. É premente alterar as regras de acesso ao Ensino Superior, com especial enfoque nos alunos que frequentam o Ensino Secundário Profissional: Hoje em dia, se quiserem candidatar-se ao Ensino Superior, os estudantes dos Cursos Profissionais têm de submeter-se a provas específicas — isto é, exames nacionais — de disciplinas que não constam nos seus planos de estudos, o que, desde logo, revela uma clara desvantagem relativamente àqueles que frequentam o Ensino Secundário Regular — os Cursos Científico-Humanísticos.
  5. Os Politécnicos poderão vir a conferir o grau de Doutor (atualmente, o RJIES, de 2007, concede essa exclusividade às Universidades).

Maria, enquanto aluna do Ensino Superior, o que tens a dizer sobre estes tópicos mencionados pela OCDE?

Maria Moreira Rato (MMR): Antes de mais, tive de me inteirar relativamente ao RJIES de 2007, sendo que, seguindo a ordem de pontos que mencionaste:

  1. No RJIES do ano suprarreferido, pretendia-se gastar, entre 2008 e 2012: 47 milhões de euros em sistemas de tecnologias de informação e comunicação, 48.000.000 em sistemas de vigilância, comando e controlo e 142M€ em instalações de cobertura nacional. Mudaram-se os tempos e as vontades também, contudo, creio que estas três vertentes não podem (nem devem) ser descuradas. 
  2. Naquilo que concerne à Investigação e Desenvolvimento (I&D), encontrei alíneas de artigos em que constavam informações como a do artigo 42.º, que aborda os requisitos das universidades: “e) Dispor de centros de investigação e desenvolvimento avaliados e reconhecidos, ou neles participar”. A conexão às empresas é apenas referida ao nível dos institutos politécnicos, o que constitui uma falha gigantesca e esta progressão que constatámos é bastante positiva, na medida em que a academia e o mundo profissional são indissociáveis.
  3. No regime de 2007, encontrei somente “O financiamento das instituições de ensino superior públicas e o apoio às instituições de ensino superior privadas realiza-se nos termos de lei especial”. Creio que essa “lei especial” seja a de 15 de julho de 2003, aprovada pelo então Presidente da República Jorge Sampaio, em que é referida a seguinte fórmula: “Em cada ano económico, o Estado, pelos montantes fixados na Lei do Orçamento, financia o orçamento de funcionamento base das atividades de ensino e formação das instituições, incluindo as suas unidades orgânicas ou estruturas específicas”. Julgo que não tenho conhecimento suficiente para opinar acerca disto, mas se a nova fórmula beneficiar os estudantes e a sua aprendizagem, estarei totalmente de acordo.
  4. No que diz respeito ao Ensino Secundário Profissional, é possível ler somente esta informação: “Na 1.ª fase do concurso podem beneficiar de preferência no acesso a pares estabelecimento/curso de ensino superior politécnico, até um máximo de 30% do total das respetivas vagas, os candidatos oriundos de um dos seguintes cursos…” e, resumidamente, estão incluídos nesse leque os cursos “tecnológicos do ensino secundário”, os “de aprendizagem com equivalência ao 12.º ano”, os “técnico-profissionais do ensino secundário” e os “da via profissionalizante”.
    Bom, devo admitir que este antagonismo criado entre “estudantes da ‘via normal’” e “estudantes da ‘via profissionalizante’” me causa um certo desconforto, pois há pessoas que terminam o Ensino Secundário num curso Científico-Humanístico com uma média miserável e sem bases para ingressarem no Ensino Superior e há alunos e alunas que saem bem preparados de um curso dito profissional. Mas sendo sincera, acho que tudo depende da personalidade e do empenho de cada um (como em quase tudo na vida) e percebo a instituição de exames nacionais iguais para todos, para que o ingresso no Ensino Superior não favoreça ninguém. Se esta forma de aferir conhecimentos acaba por prejudicar determinadas pessoas? Sim, tanto as dos cursos ditos regulares como as dos “profissionais”, por isso, não tenho uma opinião consolidada acerca deste tema.
  5. Escusado será dizer que nem se pensava nisso há 11 anos, mas tendo ingressado em 1.ª fase numa licenciatura numa universidade e candidatado poucos dias depois à licenciatura em Jornalismo na ESCS, tenho a plena noção de que um politécnico tem tantas (ou mais) capacidades que uma universidade para oferecer esse grau de ensino/especialização a alguém.

           Marcos, enquanto funcionário e antigo aluno do Ensino Superior, que balanço fazes destes regimes que estão separados por 11 anos?

MM: Se Dez anos é muito tempo, como canta Paulo Carvalho, onze é demasiado. O panorama do Ensino Superior português exige uma reforma. Em resposta ao relatório apresentado pela OCDE, o Conselho de Ministros, de 15 de Fevereiro, aprovou um conjunto de iniciativas que, passo a citar, “vêm dar resposta às recomendações [desse relatório], reforçando as orientações adotadas, durante os últimos anos” — leia-se o RJIES, de 2007 — “nos domínios do Ensino Superior, Ciência e Inovação”. É um primeiro passo, provavelmente, cheio de boas intenções — e nós sabemos que sítio está delas cheio —, mas é, pelo menos, um sinal de que o Governo está preocupado com o sector. Uma das principais alterações — que, aliás, protagonizou a agenda mediática — tem que ver com a possibilidade de os politécnicos atribuírem o grau de doutor. Há muitos anos que o Ensino Politécnico é discriminado face ao Universitário, uma vez que, tal como referi na introdução deste artigo, o RJIES confere essa exclusividade às universidades. Ainda assim, parece-me que o Governo (ainda) não é explícito. O que o Comunicado do Conselho de Ministros diz é o seguinte: “Modernização do regime jurídico de graus e diplomas do Ensino Superior”. Falta, então, perceber de que forma a medida será implementada, isto é, quais serão as regras do jogo. Quanto ao acesso ao Ensino Superior (nomeadamente, para alunos provenientes do Ensino Profissional), ainda não encontramos — pelo menos, neste Comunicado — qualquer referência ao assunto.

A quem se interessar pela temática, sugiro a leitura, na íntegra, do Comunicado.

Maria, sentes algum preconceito relativamente ao Ensino Politécnico?

MMR: Colocaste-me uma questão deveras pertinente. Sinto esse preconceito até oriundo de pessoas que frequentam o Ensino Politécnico, portanto, creio que os estereótipos são criados e as pessoas não conseguem esquecê-los mesmo a posteriori. Dando o meu exemplo, antes de ingressar no Ensino Superior, ouvia amigos, amigas e até colegas de turma dizer disparates como: “Os politécnicos são para burros” ou “As universidades é que são boas, temos a teoria e a prática, nos politécnicos aprendemos coisas básicas”.
A verdade é que basta fazermos uma pesquisa rápida para nos depararmos com passagens como: “Enquanto que o ensino universitário se orienta pela investigação e criação do saber, o ensino politécnico orienta-se pela aplicação e o desenvolvimento do saber e pela compreensão e solução de problemas concretos”. Não sei quanto a ti, mas frases como estas fazem-me comichão, porque parece que há sempre a necessidade de enaltecer as universidades, de esclarecer que nos politécnicos aprendemos aquilo que foi criado nas universidades quando, na realidade, isso não corresponde àquilo que fazemos.
Acima de tudo, noto duas tendências: quem se forma numa universidade é encarado como sábio e trabalhador, enquanto os alunos dos politécnicos são “preguiçosos” e, supostamente, ingressaram no Ensino Superior com uma média mais baixa (existem variados cursos em que isso não acontece; poderia fazer uma lista, mas não vale a pena, porque acredito que quem nos lê não é dono de uma mente pequena) e dá-se uma diferenciação social; por outro lado, o ingresso no mercado de trabalho é realizado de uma forma muito mais rápida pelos licenciados nos politécnicos – será que o saber-fazer que tanto criticam é aquilo que nos diferencia na hora de mostrar aquilo que valemos?

MM: É preciso clarificar que ambos os subsistemas de ensino — o Universitário e o Politécnico — são válidos. Não são contraditórios. São, antes, complementares. Não está em causa um ser melhor do que o outro. Mas o ponto 1 do artigo 3.º do RJIES distingue-os, enunciando que o Universitário se deve orientar para a “oferta de formações científicas sólidas, juntando esforços e competências de unidades de ensino e investigação” e o Politécnico para “formações vocacionais [e] técnicas avançadas, orientadas profissionalmente”. Daí ser comum dizer-se que os cursos universitários são mais teóricos e os politécnicos mais práticos (se quisermos simplificar o paleio da lei). Na sequência deste estudo da OCDE, ocorre-me a questão: como definirá o novo RJIES o sistema binário do Ensino Superior português?

Para concluir, uma coisa é certa: é tempo de, uma vez por todas, o Politécnico deixar de ser o parente pobre do Ensino Superior. E parece-me que esta reforma, que se avizinha, será um passo nesse sentido — pelo menos, assim o espero.

 

[wp_biographia user=”marcosmelo”]

[wp_biographia user=”mariamoreirarato”]

AUTORIA

+ artigos