Editorias, Opinião

A culpa (não) é minha?

Hoje venho falar-vos de algo que compreendi recentemente e que pretendo partilhar. Todos nós ouvimos que o melhor tempo das nossas vidas é o tempo passado na faculdade. Alguns sentiram com certeza um desconforto, como se nos dissessem que este momento em que estamos é o máximo que, no que toca a felicidade pura, podemos almejar. Eu sempre fiz questão de partilhar o privilégio que me foi concedido ao ser-me permitido estudar, e já apontei diversas vezes os benefícios do mesmo. No entanto, sempre assumi que era o tempo o principal fator que distinguia entre este momento e o resto das nossas vidas. Essa capacidade de ter vários meses de férias num ano, a possibilidade de poder usufruir da relação perfeita e harmónica que existe entre o tempo e a ausência de ter de pagar pelo espaço.

Percebo agora, mesmo com apenas um vislumbre do meu futuro, como me faltavam tantas peças para completar o puzzle. A verdade é que não é só o tempo, são as responsabilidades. Estarão certamente a pensar: isso é óbvio, aliás, sempre nos foi dito exatamente isso. E terão razão, mas não falo de responsabilidades como o peso de sustentar uma casa ou de ter que levantar todas as manhãs para ir para o trabalho, ou mesmo o peso esmagador de ser pai. Essas são inimagináveis e claro matéria que se agarra a nós, para o bem e algumas vezes para o mal, e que inexoravelmente teremos de carregar. Eu refiro-me ao facto de, no mundo do trabalho, a responsabilidade ser nossa, mas nem sempre depender de nós. A este sentido de impotência, de fazer o que estava ao nosso alcance e o insucesso depender de agentes externos sobre os quais quase não temos influência.

Eu na faculdade, com mais ou menos trabalhos de grupo, dependo de mim ou das pessoas que me rodeiam para chegar a bom porto. Tenho acesso a toda a informação necessária para fazer boa figura, ou pelo menos, para não chumbar miseravelmente. Isto não acontece no mercado de trabalho. Comunicamos com agentes que não possuem os mesmos objetivos ou que são mesmo, tangencialmente, muitas vezes contrários e até contraditórios. Resta-nos uma sensação constante de ineficácia e um trabalho sem resultados. Somos um corpo sem sombra, um animal sem rasto. Perde-se então, sem apelo nem agrado, o sentido das nossas ações e temos de arranjar formas de lidar com isso. Isto resulta normalmente numa desresponsabilização em mãos alheias, como quem a deposita em Deus e lhe reserva o desígnio dos resultados de todas as coisas, ou como quem a deixa nos fados não menos nebulosos da sorte e do azar, tentando constantemente influenciá-los, mas sempre aceitando o fim como ação definitiva desses agentes.

O que quero dizer é que o cérebro humano arranja formas de lidar com o que é exterior a si mesmo através da negação da sua própria responsabilidade. Infelizmente, como não possuo em mim nenhuma das capacidades anteriormente descritas, sobram-me a angústia do falhanço possível e a responsabilização pessoal de algo que não só a mim diz respeito. O que me leva a considerar que não é apenas o tempo que se perde quando se dá a entrada no mundo oficial dos adultos, mas a consciência de que o terreno que pisamos é altamente instável e de que muitas vezes nos é tirado o chão aquando do próximo passo.

Não possuindo uma solução total que me proteja desta recém-descoberta (e provavelmente muito tardia, reforçando este sentimento de privilégio), permito-me apenas reforçar esta noção de singularidade que é o tempo passado na faculdade. Estes serão inevitavelmente os momentos aos quais recorrerei no futuro, sorrindo depois com lágrimas, nessa forma de prazer-dor, resultante da bem-recebida e velha amiga nostalgia. Abarco agora, e na impossibilidade de me permitir a isso no futuro, a certeza inabalável de rogar pragas a quem destinou a grandeza somente ao brotar da vida, sonhando hoje com um amanhã tão ou mais feliz que este agora.

“O João Garrido escreve ao abrigo do novo acordo ortográfico”