Opinião

#aboutlastnight

Abro os olhos. Os gritos incessantes aproximam-se com ferocidade. Rejeito-os como posso: projeto em mim as noites passadas a beber com os amigos, os dias a florirem e eu a chegar a casa, qual rebelde do sistema que não é meu e que tanto prazer sentia em desafiar. Voltam os gritos. Juntam-se pressões intermitentes no meu ombro, no braço, e finalmente na cara. Esfrego os olhos. O relógio diz 3:56, que raio de hora para acordar! É que 4:00 da manhã faz sentido, afinal as narrativas devem ser certas, ter uma sonoridade quase harmónica no decorrer das cenas. Agora esta hora só podia ser mesmo minha, desta realidade que me oprime, que me corrói de cada vez que olho para ele e vejo o fim de uma era. Levanto-me, ela vira-se e finge que volta a dormir, ou adormece mesmo, tem mais jeito do que eu para fingir que esta vida foi feita para nós, e não para ser um castigo perpétuo. E, já agora, de muito mau gosto.

Na rua vagueiam somente almas com um destino madrasto traçado, e aqueles que não o pretendem aceitar, estando, no entanto, tão intrinsecamente agarrados a ele como os restantes. Testo a temperatura do biberon. Aperto. Dou-lhe à boca. Ele abre os grandes olhos e vislumbra o mundo novo, fazendo quase tudo valer a pena. Invejo-lhe a pureza da alma, a sensação de novidade, de liberdade. Volto a atraiçoar a minha vida. Mudo a fralda. Volto a perscrutar a noite, na esperança de ver o diabo a olhar de volta com um sorriso macabro, vendo refastelado e satisfeito o resultado da sua obra. Embalo-o. Dou-lhe um beijo e vejo-o a agarrar-me o indicador com todos os seus dedinhos. Forço-me a resistir aos seus encantos recusando aceitar que, bem lá no fundo, há algo dele que é meu. Oiço o acalmar e o pesar da sua pequena respiração. Respiro de alívio.

Volto ao quarto, as horas já não interessam, os minutos que passaram já se perderam e só resta o cansaço do amanhã, desse dia de trabalho sem futuro, esperando-me somente um conjunto de sucessivos presentes. Volto a olhar para ela, desta vez dorme a bem dormir. Invejo-lhe a sorte. Passo pela janela, imagino-me a saltar, depois penso no meu pai. “És um fraco”. Não, não lhe vou dar esse gosto. Deito-me. Perco-me entre os sonhos não alcançados e a lista de compras das fraldas que já começam a escassear, nessa perfeita interseção entre o sonho e a realidade, nesse limbo do qual me vou recusar a sair.

Até que o alarme toca, e recomeça tudo outra vez.

Fecho o ecrã do computador. Esfrego os olhos, olho parcialmente, sabendo que as horas às que me dirijo já se foram há muito. 3:04. Ao menos a apresentação está terminada, o projeto concluído, algo que faça sentido. Arrasto-me com delicadeza pelo corredor fugindo do som, parando para ver se ele respeitou a minha dedicação. Agarro-me à única imagem perfeita deste mundo destroçado projetando na sua pequena face todos os meus desejos interrompidos e frustrados, repetindo a noite que para sempre marcou a minha vida. Quem me mandou aceitar aquele quarto copo de vinho? Só mesmo o teu pai para me convencer. Não sei se desejo com mais força que lhe saias a ele ou que nada tenhas a ver com esse homem que moldou literalmente o resto da minha ainda demasiado curta vida.

Coloco o alarme. Deito-me com cuidado para não o acordar, uso a sua respiração pesada como embalo e adormeço amando-o e odiando-o mais a cada dia que passa. Entre os sonhos entrecortados de quem está demasiado cansado para os compreender, distingo gritos e automaticamente amaldiçoo a minha sorte. Não. Desta vez não. Com o remanescente das minhas já escassas forças vou tentando acordar o Felipe. Sinto-o a mexer. O meu corpo relaxa de alívio, voltando-se a perder no sono, agora amando-o com todo o coração, capaz de suportar todas as armadilhas que nos foram traçadas, desde que ele me acompanhe nesta viagem a que chamamos vida.

Resta o silêncio. Aquele silêncio simplesmente delicioso que tudo cura, que limpa as mágoas, que nos enche a alma. Volto a sentir o peso do corpo a encaixar na cama, tudo volta a estar na sua plenitude, e quase me sinto feliz. Nas estórias que nos contam quando somos pequeninas esquecem-se de nos falar do cansaço, das dores, das discussões, da falta de tudo no final do mês. No entanto, neste exato momento, em que a cama está com a pressão certa, o bebé está a dormir, o mundo descansa e se esquece da ditadura que opera, eu sou mesmo a princesa da minha própria estória, com direito a príncipe, e a um reino encantado.

Depois o alarme toca, e recomeça tudo outra vez.

“O João Garrido escreve ao abrigo do novo acordo ortográfico”