Opinião

Afirmar o jornalismo, para não ter de dizer “salvá-lo”

A última vez os jornalistas se reuniram em congresso foi há quase 19 anos. Não queria repetir o momento Marcelo Rebelo de Sousa com a Rainha Isabel II, era eu ainda uma criança. O mundo não teria mudado nos últimos anos para que fosse necessário refletir mais sobre a profissão que assume um papel essencial na coesão social e na construção da democracia?

O jornalismo vive hoje um momento de especial importância e redefinição. Não porque as pessoas deixaram de consumir os conteúdos, mas porque as audiências estão a consumir de forma diferente e a multiplicidade de plataformas, de fornecedores e de informação nos fez esquecer do essencial: contar histórias. Mas histórias que digam alguma coisa às pessoas e que no final do dia as metam mais informadas sobre o mundo em que vivem.

O consumo de jornais em papel caí abruptamente e as redações das rádios são cortadas. Já não vamos ao fim do mundo, e mesmo ao fim da rua temos dificuldades.

Vamos a Cuba, a do Alentejo, para falarmos da morte de Fidel Castro. E quando lá estamos, na ‘verdadeira’ Cuba, à boleia do Presidente da República, não aproveitamos os ‘tempos mortos’ para procurar a história que está fora da caixa e o protagonista inesperado.

A televisão enche horas de diretos que prendem espectadores, mas que não passam de lixo de baixo custo e elevado retorno (de audiências, porque o espectador acaba por não perceber o que afinal é essencial perceber sobre o assunto).

Dependemos hoje mais do que nunca das agências e a exigência de dar primeiro a notícia tornou-nos imprecisos e pouco pluralistas. Com consequências imprevisíveis. Se nos Estados Unidos se fala no papel das notícias falsas na eleição de Donald Trump, por cá um rodapé na TVI24 fez cair um banco.

Generalizou-se na sociedade a visão de que não é preciso pagar para ter bom jornalismo. E isto está a matar-nos. Está a destruir redações. Estamos a exigir que uma pessoa faça o trabalho que duas ou três deviam estar a fazer. E o leitor já não estranha, faz scroll.

Rodamos estagiários mais depressa do que os seus próprios sonhos.

A agenda dos media está a pautar-se pela agenda das redes sociais. Por aquilo que é trending. O que partilhamos à hora de almoço, ao jantar deve ser notícia na televisão. E os media começam a perder influência. Afinal de contas, já todos vimos o que todos partilharam e o que precisávamos mesmo de saber acabou por ser remetido para uma existência inexistente.

Passámos a depender da boa vontade do feed algorítmico das redes sociais e das partilhas que fazem aos artigos. Os instant articles estão a encaminhar-se para ser um enorme tiro no pé que vai fazer os meios estarem cada vez mais dependentes do algoritmo e não da sua própria homepage. E não vai ser o Facebook a pagar pelos conteúdos que ‘consome’, mas ele vai querer que os media o façam para poderem ‘aparecer’ no seu feed.

Estamos hoje mais dependentes dos anunciantes e não dos leitores. E os anunciantes nem sempre têm só a qualidade e credibilidade como exigências. E é por isso que o Serviço Público de Média tem de assumir uma especial importância com um necessário papel diferenciador nestes tempos.

O quarto Congresso dos Jornalistas surge no meio de uma tempestade perfeita. Se o tema é “afirmar o jornalismo” talvez aquilo de que precisávamos mesmo era de o redescobrir. Precisamos urgentemente de que se dê condições aos profissionais para que redesubram a paixão pelo jornalismo. E isso é dar-lhes tempo, condições, equipas coesas, a possibilidade de sair da sua secretária e direções empenhadas no projeto e não apenas nos números.

Vamos pouco além de Lisboa. Abrimos noticiários com um cano que rebentou na cidade e fechamos com a notícia de que a capital foi escolhida como “a cidade mais qualquer coisa para não sei quem”. Se é certo que quase três milhões de portugueses moram na Área Metropolitana de Lisboa, também é verdade que, pelo menos, sete milhões não moram e esses também precisam de um jornalismo de proximidade.

Poucos dias depois de ter chegado aos estúdios do Monte da Virgem, onde funciona a ‘RTP Porto’, tive a possibilidade de conversar com o Fausto Coutinho, então diretor de Informação da Rádio Pública. Era eu um rapaz de 18 anos, acabado de chegar de Lisboa. A primeira coisa que lhe quis perguntar foi o porquê de ele ter acabado com o único desdobramento regional de emissão que havia na Antena 1. Estava chateado com o facto de se ter acabado com o último pedaço da história dos emissores regionais da RDP que tantos jornalistas ajudaram a formar (à época, na hora do “Portugal em Direto”, a emissão nacional desdobrava-se em emissões regionais com reportagens sobre a zona onde o ouvinte se encontrava). Ele disse-me “porque só dessa maneira é que os problemas chegam a Lisboa. E só assim Lisboa vai ter de os resolver”.

Não costumo mudar facilmente de ideias, mas percebi que aquele argumento estava certo. E perguntei, “se é assim, porque é que a edição é feita a partir do Porto e não de Lisboa?”. E ele respondeu-me uma coisa de que nunca mais me esqueço: “Um jornalista de Lisboa pensa que um buraco no Terreiro do Paço é notícia”. Será?

Experimentamos o Snapchat, Instagram, a stories, vine, periscope, lives no facebook. Todos queremos todos estar primeiro na “next big thing”, e acabamos por lançar coisas sem testar e apostamos recursos onde os devíamos poupar. E com isto não estou a dizer que não devemos arriscar. Antes pelo contrário. Mas não precisamos de arriscar em tudo ao mesmo tempo à espera de que algum daqueles formatos seja a cura para a indiferença face ao que produzimos.

E essa indiferença começa quando, por dia, recebemos dezenas de alertas “push” de alegadas últimas horas que não passam de uma estratégia para salvar os objetivos do dia e que encurrala o leitor num título de clique obrigatório. E já está: o leitor é agora refém das notificações que subscreveu.

A geração que sai hoje das universidades é a mais bem preparada de sempre. Não tenhamos dúvidas disso. Mas esbarram nas difíceis condições de acesso à profissão. Nos orientadores de estágio que se esqueceram de que um dia também eles foram estagiários. No pagar para trabalhar. Na exploração. Nas portas que não se abrem e nas respostas que tardam em chegar. E os sonhos que têm ficam pendurados. Mas deixam uma lição enquanto vão ‘enchendo’ blogues, criando sites de informação, procurando histórias, à espera do dia em as portas se abram e eles tenham simplesmente aquilo que tanto procuram: uma oportunidade.

Se o jornalismo está ligado à máquina? Não, não está. Os profissionais não perderam qualidade, o leitor não perdeu a exigência, as histórias não perderam o valor e os protagonistas não deixaram de ter interesse.

Talvez tenhamos só perdido o mais essencial: o tempo e o espaço para poder contar histórias, sem a pressão dos números que nos atormenta. E julgar a qualidade do jornal pelo número de leitores, uma rádio pelo número de ouvintes ou o canal pelo número de espectadores é o mesmo que julgar um homem do lixo pelos quilos de resíduos que recolhe durante um dia. É só parvo.

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