Capital

“As ovelhas não são mansas”

 Os cortes por parte do governo afetam cada vez mais pessoas. Indignados com este novo Orçamento de Estado, os portugueses saíram à rua para fazerem ouvir a sua voz.

“É isto ou um país sem qualquer futuro, os nossos filhos sem futuro, os nossos netos sem futuro, um país destruído, em muitos poucos anos”, afirma Daniel Oliveira, o ex-bloquista, quando questionado sobre o que mais haverá a fazer para pôr termo à crise económica e social que Portugal atravessa. “A manifestação é de facto uma arma do povo”, palavras de Rosa Maria, 61 anos, desempregada, que comprova que de facto é na manifestação que a população encontra a forma mais imediata de partilhar o seu descontentamento com os governantes e com o resto da nação, numa tentativa de fazer ouvir a sua voz; a de sábado não foi exceção, reunindo centenas de insatisfeitos com a solução adotada pelos governantes.

“Nós retirámos 14 mil milhões à economia e poupámos com isso 2 mil milhões; nós destruímos centenas de milhares de empresas, milhares de empresas e o nosso deficit está na mesma, a nossa dívida é maior, não resolvemos um único dos problemas sequer que era suposto resolver. Portanto, olhando para isto, podemos concluir pelo menos uma coisa: isto não é solução”, visão esta partilhada pela restante massa protestante, quer através de cânticos quer de cartazes e faixas nos quais era possível distinguir o sentimento de insatisfação coletivo e, em alguns, até mesmo desânimo e falta de confiança quer numa entidade governativa quer num melhor futuro. “Sinto que sou a geração encalhada, sou a geração que viu isto tudo nascer, que viu o 25 de abril acontecer neste país com uma ilusão enorme, com um sonho enorme, de que este país se transformasse num desejo que era o de nós todos e aquilo que eu vejo e que eu sinto é que os sucessivos governantes, e aqui não é de esquerda nem de direita, foram todos os que passaram e estiveram no poder arruinaram esse sonho, arruinaram a vida dos portugueses e estão a arruinar a vida daqueles que ainda nem sequer nasceram”, confessa Maria Mendes, de 49 anos, bastante comovida quer pela sua situação de desencanto para com o país por que a sua geração lutou mas também pela incerteza que paira sobre o futuro daqueles que mais queridos lhe são: os seus próprios filhos. “O meu filho mais velho caminha para um futuro desconhecido, saltitando de trabalho em trabalho precário, recibos verdes, outsourcings, esse tipo de trabalho que não traz, digamos assim, uma expectativa de futuro, de família, de filhos.”, situação esta, do filho de Maria Mendes, semelhante à muitos portugueses, jovens e já não tão jovens. Teme não só pelo futuro do seu filho mas também pelo da sua filha, estudante do ensino secundário: “estão a acabar com a escola pública, eu queria que a minha filha, que tem vontade de seguir a universidade, tivesse essa oportunidade, numa escola pública.”. Mas não são só os seus filhos que são afetados pelas contínuas medidas de austeridade; a sua própria mãe acaba por também sofrer com estas: “A minha mãe está institucionalizada, neste momento é quando mais precisa de cuidados, paga uma mensalidade numa casa de 1500€ e era neste momento que ela precisava da sua reforma por inteiro.”.

Pela revolta que alguns manifestantes exibiam aquando da caminhada, é fácil deduzir que muitas mais Marias Mendes se encontram no meio da massa protestante, alguns até mesmo revoltados com os que não fizeram parte da mesma, como é o caso de Rosa Maria, 61 anos, desempregada: “Hoje deviam estar muito mais pessoas e não pode ser só as manifestações convocadas por sindicatos, tem de ser mesmo uma consciência de todas as pessoas, uma consciência cívica de que temos de fazer alguma coisa e já não há muito que possamos fazer. Pelo menos manifestarmo-nos temos de fazer. Porque ficar só à espera do que há de acontecer, não. Um dia será tarde e já não vamos a tempo.”. A par disto, é ainda possível ver cartazes com frases como “O lobo é mau porque as ovelhas são mansas”, numa tentativa de fazer ver que a apatia só trará piores consequências e mais austeridade.

O caminho até à entrada da Assembleia da República foi feito sem qualquer percalço, o que também se pode ter devido ao reduzido número de indivíduos presentes nesse dia na manifestação, Apesar a adesão não ter sido tão grande quanto costumava ser, a presença dos que ali estavam fez-se notar ao longo de todo o percurso através de cânticos, de entre os quais se podiam distinguir alguns como “É só mais um empurrão e o governo vai ao chão”, “Portas, Coelho e Cavaco, são tudo farinha do mesmo saco.” e até mesmo um simples “Está na hora de o Governo ir embora”, passando pela já tradicional “Grândola, Vila Morena” cantada em uníssono por todos os presentes e terminando com a própria fanfarra de companhia improvisada com todo o tipo de objetivos que fossem capazes de produzir barulho que fosse bem notório, tendo feito parte deste grupo apitos, megafones e até mesmo alguns acessórios de cozinha como tachos e panelas. A força policial estava presente, como não poderia deixar de ser, contudo não houve nenhuma espécie de intervenção por parte da mesma. Na chegada ao Palácio de São Bento já era visível uma maior concentração policial, em particular na grande escadaria, para impedirem que os manifestantes se instalassem na mesma ou avançassem para além dela. Apesar deste bloqueio policial, não houve qualquer confronto entre as duas partes. O palco já montado no local dava a entender que se seguia uma tarde de discursos quer por parte dos organizadores da manifestação como por alguns nomes mais conhecidos pela maioria da população portuguesa, entre os quais as atrizes Luísa Ortigoso e Joana Manuel e a líder do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, tendo-se seguido a este conjunto de discursos a atuação de uma banda. Uma das frases mais marcantes de toda a tarde de discursos foi “Nós temos direito a viver e viver não é só respirar.”, proferida por um dos responsáveis pelo movimento dos deficientes indignados, em revolta com a atual situação que estes enfrentam e à necessidade que têm de recorrer à caridade, à falta de qualquer outro apoio estatal. À semelhança do que aconteceu antes, não houve nenhuma complicação a registar e a manifestação prolongou-se  até às 19h, sensivelmente, tendo sido a esta hora que a maioria dos presentes começou a abandonar o local.

“Está nas nossas mãos a dignidade deste país e as gerações que virão a seguir não nos perdoarão se nós permitirmos que este país deixe de existir na prática e é isso que está prestes a acontecer, este país não existir na prática, não existir como democracia, não ter instituições, não ter autonomia, não ter soberania e, sobretudo, não ter dignidade.”, Daniel Oliveira lança o apelo para a manutenção da dignidade de um país assombrado por uma dívida externa que parece não ter solução para um futuro tão breve e cujo crescimento, cada vez mais notório, é sempre acompanhado de um incremento na austeridade. “Há alguma ética em torno da questão da dívida e sempre existiu, até os católicos têm algum discurso sobre essa matéria, ou seja, há um limite a partir do qual o credor, utilizando a dificuldade em que está o devedor, não o pode destruir.”. Destruição essa temida tanto pelo comentador político como pela restante população portuguesa. “A dívida é uma questão com a qual todos temos de lidar e com a qual muitos estados lidaram. A Alemanha, que é um dos nossos principais credores, é provavelmente o país da europa que mais vezes ficou sem pagar as suas dívidas e algumas com razão e ainda bem, porque permitiu lhe permitiu reconstruir-se, tornar-se uma democracia; nós não pedimos mais do que a Alemanha já teve.”.

 

 

 

 

 

 

Fotografia: Maria Lourenço

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