Opinião

Discurso Digital: Empobrecimento ou Enriquecimento Linguístico?

Este artigo é escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico

É inegável o impacto que o galope científico tem no quotidiano. Agora, mais do que nunca, a nossa vida gira em torno de um paradigma da microeletrónica em rede – objetos básicos da culinária, como uma torradeira ou uma cafeteira, juntam-se hoje a um universo online governado pelas aplicações.

É natural que a língua, tratando-se de uma codificação arbitrária e mutável, tente acompanhar este híper-avanço tecnológico. Assistimos hoje a uma metamorfose na forma de escrever e de falar, que vai muito para além da formalização do novo acordo ortográfico. Refiro-me a uma espécie de simplex linguístico. Um novo discurso resultante de uma adaptação quase darwiniana à atual conjuntura tecnológica.

Parte desta digitalização da língua acontece graças à incrível capacidade do cérebro humano em compreender padrões ditos deficientes (como é o caso dos logogramas e/ou truncamentos) – se a abstração não fosse possível, então qualquer desvio da língua demoraria décadas, ou mesmo séculos, a poder ser implementado no nosso vocabulário.

Se olharmos para o discurso digital através do prisma da gramática mãe de determinada língua, então vemos um dialeto recheado de falhas que vão desde a má ortografia, à violação da semântica. Mas será esta uma forma viável de observarmos este fenómeno? Acredito que a verdadeira questão que se deve pôr é se esta nova forma de escrever enriquece ou empobrece a língua.

Quando Orwell no seu magnum opus “1984” apresenta o conceito de novilíngua (o progressivo truncamento e eventual desaparecimento de vocábulos), este é visto como uma forma de controlo de massas e de homogeneização cognitiva – o ser humano só consegue pensar através das palavras que tem à sua disposição; a destruição do significado vocabular é a castração do pensamento. O crimepensar será eventualmente impossível já que nos faltarão as palavras para este ser “internamente expresso”. Há alguma franja ideológica que tenta equiparar esta nova forma de falar/escrever com esta visão orwelliana de restrição do cogito. Julgo tratar-se de um extremismo e de uma analogia inválida.

Os neologismos truncados e seus afins da linguagem atual são resultado e resposta direta à penetração científica. Esta hipermodernidade, como lhe chama Gilles Lipovetsky, exige rapidez. O tempo é agora o recurso mais precioso de um indivíduo. Passámos do fast food para a fast language.

Numa nota algo tangencial é extremamente interessante reparar-se no aparente paradoxo entre o enorme aumento da esperança média de vida e a necessidade de que tudo seja “aqui e agora”. Seria de esperar que, quanto mais curta fosse a longevidade biológica, maior exigência existisse na velocidade dos serviços. Talvez o avançar dos dois tenha sido tão simultâneo que fazer análises separadas vire mera conjetura sociológica. Ou talvez estejamos perante um caso de uma sociedade “mimada” por ter crescido demasiado rápido. É difícil dizer.

Claro que a proliferação deste discurso digital também é fruto da tentativa de construção de uma identidade com mero propósito de agradar a um público imaginado – a perpetuação do gosto alheio é uma forma de evitar a ostracização social. Tal ocorre a jovens que tentam falar mais “corretamente” online – muitas vezes a utilização de mesclagens, contrações, truncamentos, acrónimos, siglas e emoticons é obrigatória por mera pressão dos pares. A vida social é a agora a vida online e nenhum jovem se pode dar ao luxo de não cumprir estas regras implícitas.

Esta neo-ortografia não tem, ao fim ao cabo, nenhuma intenção sub-reptícia de empobrecimento da língua-mãe, mas tal não invalida o facto de haver uma progressiva e significativa perda no conhecimento e na capacidade de retórica dos jovens – o uso constante de “muletas” verbais (como por exemplo, “tipo”, “meu”, “puto”, etc.) tende para uma incapacidade futura da boa oralidade. Tais fenómenos não podem, no entanto, ser explicados meramente pela alienação social, pela sobredose tecnológica e pelo discurso digital: não devemos descurar fatores como classe socioeconómica, raça, cultura, idade, educação, etc.. A perda da retórica é portanto um fenómeno multifacetado, incapaz de uma explicação simples.

O discurso digital resulta então da boa capacidade humana em reconhecer padrões, dos constantes updates tecnológicos, da nova conceção de híper-sociedade e da sede atual pela imediatez. A lógica “para quê escrever a palavra/frase toda, quando o recetor percebe o sentido da mensagem, se eu escrever apenas metade” é agora rainha. Isto, como argumentei, não é necessariamente mau em termos escritos, mas temo que possa ter alguma repercussão na capacidade de bom falar das gerações vindouras.

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