Cinema e Televisão

LEFFEST – Literatura e Cinema: a história de uma relação ilimitada

 Quando era criança, ouvia o barulho da máquina de escrever do pai a altas horas da madrugada. Acabou por se licenciar em Literatura na Universidade de Toronto, não seguindo as pisadas do pai no jornalismo nem as da mãe na música. No entanto, após um longo percurso enquanto autodidata na área do cinema, hoje é conhecido por Baron of Blood. Eis que a ESCS MAGAZINE pôde assistir à masterclass Between Literature and Cinema: Where am I? de David Cronenberg.

 

 “Será que quis escrever um romance por a minha carreira no cinema ter terminado? Não, apenas acho que há coisas que já não consigo expressar através dos filmes” – foi deste modo que Cronenberg começou por se dirigir à audiência que enchia a Sala 4 do Monumental, abordando o seu livro Consumed (2014), após ter sido apresentado por Paulo Branco, diretor do LEFFEST, e Donato Santeramo, professor catedrático especializado em teatro italiano do séc. XX, cinema, literatura e semiótica.
 David referiu a saudade que sentia de ouvir o pai teclar na máquina de escrever e acrescentou: “Mas sou muito moderno, quero sempre estar a par das tendências”, algo que não deixa de ser curioso na medida em que em Consumed retrata o percurso de dois fotojornalistas que viajam pelo mundo em busca das histórias que sejam menos usuais, tentando sempre possuir os gadgets mais recentes.

 

 

 Depressa se passou para a 7.ª Arte e não deixa de ser necessário contextualizar a obra de Cronenberg: da telepatia em Scanners (1981), passando pela exploração dos perigos dos media misturada com uma crítica profética da estética contemporânea em Videodrome (1983), até às questões da mutação induzidas pela tecnologia e os tópicos da dicotomia corpo/mente que foram estudados pormenorizadamente na adaptação da obra The Dead Zone (1983) de Stephen King ao grande ecrã, podemos afirmar que Cronenberg tem mais do que motivos suficientes para ter obtido a aclamação dos críticos internacionais.
 Contudo, é importante referir que Crash (1996) é habitualmente referida como a sua obra-prima e não por mero acaso: pouco diálogo, a análise da necessidade de consumo de bens materiais a par da noção de sexo como auto-aniquilação, a obsessão pela perfeição auditiva e visual em termos cinematográficos e, claro, a seriedade pouco séria a que nos tem habituado (consegue sucumbir aos momentos melodramáticos, conjugando-os com as reflexões profundas).
 Para Santeramo, amigo de longa data de David, “é um prisma” e possui várias faces, todas elas conciliáveis: a de realizador, a de novelista, etc. Já o cineasta canadiano afirmou que só as consegue agregar porque escrever é como dirigir um filme, pois é necessário pensar nas personagens, nos locais. Essencialmente, trata-se de “uma forma superior de realização cinematográfica”.

 

  Livros versus Adaptação

 “Tens de destruir o livro e recriá-lo para que as pessoas que o leram sintam que o mesmo está representado no grande ecrã”, avançou Cronenberg, que conseguiu transportar o universo literário até ao cinematográfico com Spider (2002), baseado no livro de Patrick McGrath ou Naked Lunch (1991), adaptado do romance autobiográfico de William S. Burroughs, de 1959. Donato foi sincero quanto a este dilema, afirmando que se deve entender o ADN de um livro para que o mesmo funcione no cinema – “é como quando conhecemos duas pessoas e sentimos que são familiares sem serem totalmente iguais fisicamente, isto é, o processo de adaptação funciona nessa ordem”.

 

 

 Escrever um livro versus Escrever um argumento

 “Quem escreve um livro não deve escrever um argumento: isso é admitir que o livro foi uma falha”, gracejou Santeramo, sabendo que Cronenberg começara por idealizar Consumed como um guião que nunca terminou. Aquele que é conhecido por colocar a nu os temores do ser humano sobre a transformação corporal e, acima de tudo, entrelaçar a vertente psicológica com a física, não deixou de realçar: “A maior diferença que noto é essencialmente a observação, porque quando estava a escrever o meu livro, podia ir ao Google Maps se precisasse de ver as ruas de Nova Iorque, por exemplo, mas se estiver a trabalhar num filme, tenho de viajar no verdadeiro sentido da palavra”.

 

   Livro ou Filme?: a grande questão que não existe

   Para Santeramo, dizer que se prefere um livro a um filme ou vice-versa é errado, pois são dois trabalhos distintos e separados, até porque elementos que podem ser incluídos num filme não resultam noutra obra de arte, neste caso, literária. O King of Venereal Horror acabou por admitir que as coisas não existem da mesma forma, como os monólogos interiores que são expressos por palavras facilmente e que no cinema têm de ser transformados em recursos visuais.
 “Sim, concordo com o David, é como uma tradução, há sempre algo diferente do original, não é que seja mau… não é igual!”, ouviu-se Santeramo e Paulo Branco questionou Cronenberg se fechava as portas à adaptação de livros, ao que ele respondeu: “Não, mas é invulgar sentir vontade de o fazer mal pego num livro”, não escondendo que é essencial saber recriar as narrativas e perceber que não se pode ser cegamente fiel ao texto quando o objetivo é contar situações num meio audiovisual.

 

 

 Jean-Luc Godard costumava perguntar: “Qual é a utilidade do cinema se vier depois da literatura?”, mas parece que a resposta é bastante simples: nos livros, encontramos texto, sendo que os realizadores recorrem à imagem para nos transmitir todo um leque de emoções, sentimentos… Portanto, a sua conexão é necessária, porque lidamos com imagens e todo um mundo de possibilidades através de ambas as formas de arte.
 É caso para invocar Vergílio Ferreira em Do livro ao filme: “Assim do livro ao filme não sinto que alguma coisa de fundamental se perdesse para a intenção com que o realizei – como sinto que alguma coisa de novo se criou para lá da arte da imagem em que se transfigura”.

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