Cego por uma noite
Acordamos cedo para trabalhar ou estudar. Ansiamos pelos momentos de descanso, pelos intervalos, pelas pausas para café… Momentos esses que são sempre demasiado curtos. Esperamos pela hora de almoço, mas também passa a correr, e, quando damos por nós, já estamos a retomar o trabalho. A vida precipita-se, e acabamos sempre por não ter tempo para ler aquele livro, ir àquele museu ou dar a devida atenção aos amigos. Não temos tempo nem para as pequenas coisas, como admirar a lua ou as flores do jardim, algo bastante distinto de outras culturas, principalmente as mais antigas.
«num dia chuvoso de verão
ficarias feliz se te oferecessem
a face da lua?»
Matsuo Bashô em O eremita viajante [haikus – obra completa] (Assírio & Alvim, 2016), p. 57)
Matsuo Bashô era diferente, tal como seu país naquela época. Segundo Joaquim M. Palma, Bashô nasceu no Japão, em meados do século XII, no seio da família Matsuo*. O seu nome de nascença era Kinsaku, tendo sido alterado para Munefusa, posteriormente. Desde jovem que se interessava pela caligrafia e pela poesia, tendo começado a adotar pseudónimos, como Bashô, que em português significa «bananeira». Este pseudónimo foi adotado devido ao facto de um amigo lhe ter oferecido uma bananeira, que acabou por plantar junto da sua cabana.
Bashô escrevia sobre coisas simples, como as flores, as aves, a lua… Apreciava aquilo que nós, ocidentais do século XXI não conseguimos apreciar. Mesmo que tentemos, é impossível aproximarmo-nos da natureza da mesma forma. Ele vivia com pouco, e tinha como principal preocupação ter um local para pernoitar e umas sandálias para calçar. Vivia despojado de bens materiais, aceitando doações daqueles que apreciavam o seu trabalho. Participava em várias tertúlias e chegava a oferecer alguns dos seus versos a amigos. Imaginar este cenário, atualmente, é praticamente impossível. Restam-nos apenas os livros, que nos contam a sua história, desde as viagens de Bashô aos seus poemas: os haikus.
*Segundo a norma japonesa, o apelido de família (Matsuo) vem antes do nome próprio (Bashô).
Haikus
Na obra O eremita viajante [haikus – obra completa], organizada por Joaquim M. Palma, é possível conhecer um pouco a vida de um dos maiores poetas japoneses. Foram recolhidas 1002 estrofes, escritas sob a forma de haiku, da autoria de Bashô, mas, devidamente contextualizadas. Na cultura ocidental, nomeadamente em Portugal, os haikus – poemas japoneses de três versos – são pouco conhecidos, comparando às grandes obras poéticas de autores como Luís Vaz de Camões ou Fernando Pessoa. O eremita viajante é introduzido pela história dos haikus, facilitando a compreensão do leitor. Esta escrita tem origem na língua chinesa, adotando as próprias normas até ao início do século XX.
Os haikus derivam de um estilo chamado waka: poemas com duas estrofes de dois versos e uma estrofe com um só verso, escritos por uma só pessoa. No entanto, o estilo evolui para uma construção mais complexa – a escrita renga – onde duas ou mais pessoas escrevem estrofes que se encaixam em cadeia. No que diz respeito aos temas e vocabulário existia um estilo com vocabulário mais elaborado para as elites (ushin-renga) e outro mais simples, apreciado pelo povo e pelos monges (haikai-no-renga). Neste tipo de poemas, a primeira estrofe chama-se hokku. Ao longo do tempo, os poetas começaram a focar-se bastante na escrita desta estrofe, de forma a melhorar ao máximo a sua escrita e estas passaram a ser independentes do estilo em cadeia dos haikais. Assim, nasce o haiku (haikai + hokku), no século XIX.
A utilização de minúsculas no início dos versos e a não utilização de pontuação, a menos que o autor pretenda reforçar algo, são também elementos algo incomuns acerca dos haikus.
A vida no Japão
Bashô dedicou grande parte da sua vida à poesia, tanto a escrevê-la como a ensiná-la aos seus discípulos. Influenciado pelo budismo zen, acaba por criar o seu próprio estilo de escrita, diferente das escolas poéticas da sua época. Outra característica dos seus versos é o facto de abordarem situações tão simples que eram desprezadas pela sua própria sociedade, algo que resulta em poemas como o da rã:
«salta a rã
para dentro do velho tanque –
plof!»
Matsuo Bashô em O eremita viajante [haikus – obra completa], (Assírio & Alvim, 2016), p. 85
Através das suas palavras, os pequenos seres ganham importância e admiração. Torna-se possível imaginar paisagens japonesas, com flores, rãs, corvos, cavalos… Além de serem também referidos hábitos, celebrações, mitos, e símbolos mitológicos do país. Por exemplo, no fim do ano era hábito as pessoas limparem a casa e saldarem as dívidas, evitando a sua passagem para o ano novo. Exemplo dessas histórias mitológicas, é a referência à Caixa de Urashima. Nesta história, um pescador chamado Tarô viveu 300 anos no Palácio do Dragão, situado no fundo do mar. Nesse palácio, recebeu uma caixa com a indicação de que nunca a deveria abrir. No entanto, ao regressar a casa depois desse período, quebrou essa regra. Como resultado, o seu cabelo ficou grisalho, dando-lhe o aspeto de idoso. Embora Bashô não explicite a história na brevidade dos seus versos, as notas de Joaquim M. Palma contextualizam-na. Na obra, cada haiku tem uma nota associada com as possíveis interpretações, facilitando assim a compreensão. Por outro lado, possui também breves explicações sobre as técnicas de escrita dos haikus, assim como um pequeno glossário com termos japoneses utilizados ao longo do livro. Desta forma, Joaquim M. Palma apresenta Bashô, sendo capaz de suscitar o interesse de qualquer pessoa, independentemente da faixa etária, a conhecer o poeta, conhecido como «o pai supremo do haiku»*
«imóvel contemplo a lua
e os outros pensam
que sou cego»
Matsuo Bashô em O eremita viajante [haikus – obra completa], (Assírio & Alvim, 2016), p. 116
No século XXI é urgente parar para observar e refletir, talvez pousar o telemóvel por cinco minutos e observar o brilho das estrelas.
*(Matsuo Bashô em O eremita viajante [haikus – obra completa], (Assírio & Alvim, 2016), p. 32)
Fontes: Bashô, M & Palma, J., M. (edt). (2016). O eremita viajante [haikus – obra completa]. 1ª edição. Assírio & Alvim.
Fonte da capa: Unsplash
Artigo revisto por Andreia Batista
Obrigado Daniela.
Gosto muito deste modo de escrita, e sem querer vim aqui parar porque estava numa pesquisa sobre o livro.
A forma como abordaste o livro e como o centraste perante a efemeridade do ser humano no sex XXI está mesmo bem encaixada.
Que bom!
Obrigado. 🙂
Bastante e interessante.