Dois olhares sobre o mundo drag
Dois portugueses, dois países e a uma realidade em comum. Pedro Paiva, em Londres, e Daniel Araújo, em Coimbra, são drag queens. Antes da pandemia da covid-19, Pedro dava vida a Vaselina e atuava no The Glory. Já Daniel, encarnava o papel de Goulds e marcava presença assídua no bar Aqui Base Tango.
Um ano e três meses depois do coronavírus chegar a Portugal, os dois artistas podem dizer que viram o mundo do espetáculo estagnar. Por outro lado, contemplaram o abrir de novas portas, já que os confinamentos permitiram tempo e disposição para novas descobertas e para a realização de ambições antigas.
O princípio de uma era
Pedro Paiva é natural do Porto, mas, aos 18 anos, seguiu o chamamento de Londres para estudar “Hair and Make-Up for Fashion”. Em Portugal já tinha feito drag, porém foi no novo país que decidiu seguir um caminho mais profissional.
“Tudo o que seja fora do binário e da heteronormatividade não é uma existência, mas uma sobrevivência.”
Para Pedro, ser uma drag queen ou um drag king consiste numa “performatividade”, como se fossem atrizes e atores. “Não é mais nada além de uma personagem”, explica. Realça ainda que, na sua perspetiva, “tudo o que seja fora do binário e da heteronormatividade não é uma existência, mas uma sobrevivência”, como é o caso do drag.
A Vaselina, “para além de estar no seu apogeu da sexualidade, tem de ter um ato político”. Pedro Paiva explica como a sensualidade se torna um isco para captar a atenção e transmitir uma mensagem importante e atual. Assim, a Vaselina “representa dois focos de um espectro”.
A última performance é um bom exemplo dessa junção de significados. O bodysuit vermelho e exuberante que vestiu contrasta com a frase estampada: “Lesbianismo Político”. As músicas escolhidas a dedo, acompanhadas pelo ‘lip sing’ (ou ‘playback’) não podem fugir à mensagem política desejada.
Ao mesmo tempo, tem de garantir o maior humor possível aos espectadores, como “uma escapatória do mundo real”. Assim, a drag queen atuou ao som de “I Am Every Woman”, de Witney Houston, com pequenos excertos com a voz da cantora Cardi B a mencionar assuntos ainda vistos com alguma controvérsia, como é o caso da transexualidade.
2015 foi o ano em que Daniel Araújo descobriu a paixão pelo mundo drag, através da famosa série “RuPaul’s Drag Race”. Partilhou com os amigos e a admiração foi imediata. Rapidamente passaram de meros espectadores de televisão a frequentadores de festas LGBT em Coimbra, onde começaram a brincar com as roupas e a maquilhagem.
Dois anos depois fez o seu primeiro espetáculo, mas foi em 2018 que, em conjunto com os amigos, sugeriu uma parceria ao Aqui Base Tango, um bar em Coimbra. A ideia passaria por organizarem as próprias festas, em que seriam os DJs.
A viagem no planeta drag tinha acabado de começar. “Passei de ter um ou dois bodies para uma imensidão de roupa, quase tudo feito por mim”, conta.
Daniel olha para o conceito de drag queen como uma “multi-ferramenta” para desenvolver inúmeras aptidões e capacidades. Diversão, maquilhagem, moda, fotografia e vídeo são apenas algumas delas.
“A Goulds é o Daniel de antigamente, mas com poder e sem filtros.”
No cenário pré-covid, atuava no Aqui Base Tango como Goulds uma vez por mês. O nome surgiu do apelido da cantora Ellie Goulding, uma artista que marcou a sua adolescência como fase de autodescoberta.
“A Goulds é o Daniel de antigamente, mas com poder e sem filtros”, descreve. Ao contrário de muitas outras drag queens, não dedicou muito tempo à construção da personagem, visto que quer transmitir a sensação de “hibridez e de liberdade”.
Um mergulho na metamorfose
Cabelo, roupa, maquilhagem, acessórios. Tudo tem de estar ligado entre si, de acordo com o tema escolhido. Para Pedro Paiva, o primeiro passo é a pesquisa. Depois, com um pequeno orçamento, faz as compras que acabam sempre transformadas ao seu gosto. Quando o visual e a música são finalmente eleitos, seguem-se os ensaios de horas a fio.
45 minutos a cinco horas é o tempo que a preparação de Daniel Araújo pode demorar. Desde os oito pares de meias que veste, às esponjas que coloca para modelar o corpo, e ainda ao corpete “apertado até à alma”, tudo acontece na garagem, o lugar de transformação onde não pode faltar música.
Enquanto Pedro Paiva faz as perucas, Goulds produz as roupas de raiz e pode dizer que já começa a faltar espaço para guardar as imensas criações dos últimos meses. A última coisa a colocar são as unhas e o cabelo, os verdadeiros pesadelos da transformista.
Uma pausa sem data de retoma
Desde março de 2020 que o mundo conheceu uma nova realidade. Como qualquer artista, Pedro Paiva e Daniel Araújo não podem pisar o palco. O calor humano dos espetáculos, os aplausos, as bebidas e os atos políticos deixaram de existir. Apesar de algumas performances se terem adaptado ao online, na generalidade, a esfera drag paralisou.
A infinidade de tempo livre oferecida pelos confinamentos levou os dois jovens numa viagem introspetiva. Pedro passou cinco meses sozinho em casa. A deslocação para o emprego, que nunca deixou de funcionar, era uma das poucas coisas que lhe preenchia o tempo. Sem ocupações, confessa que entrou num processo de racionalização constante. “Se as coisas estão a mudar é para o melhor, porque tivemos tempo para refletir sobre o drag e sobre os nossos próprios atos”.
A ansiedade cresceu quando, ainda no primeiro confinamento, perdeu o emprego. Para Pedro, “a Covid-19 foi a coisa mais negativa que o ser humano experienciou nos últimos 100 anos”. Consciente da avalanche de despedimentos que assolou muita gente, fez questão de ajudar quem pudesse através de doações monetárias. Realça a importância de “estar atento” às dificuldades dos outros, “quer estejam a acontecer no prédio do lado, quer noutra parte do mundo”. Apesar dos imprevistos, revela que sentiu um desenvolvimento pessoal e acaba mesmo por olhar para a experiência com positividade.
Estudo político e de género, cozinha vegan e empreendimento são os hobbies que resumem os últimos meses do artista. Desde o desenho à confeção, Pedro Paiva conseguiu desenvolver um negócio de perucas e, agora, deixa transparecer a sua gratidão.
Em solo português, Daniel Araújo também se sentiu obrigado a refletir. Na sua visão, os efeitos da pandemia foram imensos e vieram para ficar, o que vai “criar complicações quando as pessoas precisarem de se reajustar”.
Como Pedro Paiva, consegue encarar a pandemia com dois sentimentos. “Para o mundo drag foi péssimo, mas a nível de criatividade foi bastante produtivo”. Durante os últimos meses, a quantidade de roupa e de desenhos confecionados por si triplicou.
Durante o processo de reflexão, chegou a uma conclusão importante no que diz respeito à sua área profissional. Licenciado em Arte e Design, precisou de um confinamento para compreender e valorizar um gosto já antigo. “Enquanto arrumava, encontrei desenhos de roupa que fiz em 2009”, partilha com um brilho nos olhos. Onze anos depois, decidiu seguir o caminho que há tanto tempo desejava, mesmo sem o saber. Estudar moda na Bélgica faz agora parte dos seus planos.
“O mais importante é criar um espaço seguro para aquelas pessoas, nem que seja durante 5 minutos.”
As surpresas na vida de Daniel Araújo não se ficaram por aí. Antes da pandemia, recebeu um convite para atuar no TEDx Universidade de Coimbra. O que teria sido uma longa preparação da roupa e da performance passou a ser uma preparação do discurso. Assim, a ‘talk’ que fez sobre a sua vida, obrigou-o a pensar na verdadeira razão de fazer parte da esfera drag, mesmo num contexto sem público. Rapidamente se apercebeu de um padrão. “Quando fazia as festas estavam lá sempre as mesmas pessoas, que iam por minha causa.”, revela. Na sua visão, “o mais importante é criar um espaço seguro para aquelas pessoas, nem que seja durante 5 minutos.”
Onde se está a salvo?
De acordo com um estudo sobre “Os 150 Piores (E Mais Seguros) Países para os LGBTQ+ viajarem”(hiperligação), Portugal é considerado o quinto destino mais seguro. Por sua vez, o Reino Unido fica em sétimo lugar. A realidade de Pedro Paiva é diferente e chega a admitir que se sente mais seguro como Vaselina pelas ruas londrinas.
“Apesar de em Portugal existirem muito menos crimes de ódio, a população ainda olha para drag queens como algo novo, é uma mentalidade completamente diferente”, confessa. Na visão do artista, o país ainda tem um longo caminho pela frente e considera que a melhor resposta é “a utilização de uma ferramenta educacional nos habitantes”.
“Os crimes de assédio são inevitáveis porque, apesar de tudo, muitos homens têm o fetiche de outros homens que se vestem de forma feminina.”
“Em Londres há muito amor nas ruas, há muito mais aceitação. Algumas pessoas gritam “You go girl” quando passamos”, relata com um sorriso no rosto. No entanto, revela que os crimes de assédio são inevitáveis “porque, apesar de tudo, muitos homens têm o fetiche de outros homens que se vestem de forma feminina”.
Vaselina sente que “não se podem admitir faltas de respeito, especialmente quando se está apenas a trabalhar”. Os comentários desagradáveis existem e a resposta da transformista é o silêncio. “Se mostrares a essa pessoa que estás confiante de ti próprio, ela vai sentir que o seu poder está a ser retirado”, clarifica. Entre gargalhadas, acaba por admitir que não sai de casa sem o seu ‘taser’, em português, uma arma de eletrochoque.
“Nunca saio sem pelo menos duas pessoas comigo. Não tenho como me defender. Estou de saltos altos, com roupa apertada, estou vulnerável.”
Daniel Araújo também não se sente confiante a passear pela calçada portuguesa. Aliás, foi no Halloween de 2019 que a Goulds saiu pela primeira vez à rua. A data foi especialmente escolhida para uma sessão fotográfica porque nesse dia é “aceitável” apresentar-se assim, o que a fez sentir mais confortável. “Nunca saio sem pelo menos duas pessoas comigo. Não tenho como me defender. Estou de saltos altos, com roupa apertada, estou vulnerável”, confessa.
A luta pelos holofotes
“As drag queens trabalham horas ridículas, nunca são bem tratadas nem bem pagas”. CITAÇÃO
Seja pela dimensão da cidade, seja pelas pessoas de todo o mundo que a ocupam e que trazem consigo mentalidades progressistas, o número de espaços drag em Londres ultrapassa em grande escala os existentes em Portugal. A competitividade entre as profissionais da área existe e “é maior do que em qualquer outro lugar”.
Para Pedro Paiva, o facto parece ser um reflexo das escassas oportunidades e da exploração laboral. “As drag queens trabalham horas ridículas, nunca são bem tratadas nem bem pagas”, lamenta. Na sua opinião, a falta de espaço para uma drag queen crescer e viver apenas da profissão em Portugal “é a diferença mais importante e notória entre as duas cidades”.
“Não é preciso sabotar ninguém para chegar a algum lado”.
Daniel Araújo partilha da mesma visão e viveu uma experiência que retrata essa realidade. Uma simples participação num concurso para ganhar um emprego numa discoteca tornou-se num verdadeiro pesadelo. Depois da Goulds atuar, Daniel deixou as roupas num canto da sala. Quando chegou a casa não conseguiu conter o espanto ao encontrar o vestido “todo cortado”. Enquanto conta a história com um olhar incrédulo adverte que “não é preciso sabotar ninguém para chegar a algum lado”.
Em Londres, por outro lado, a comunidade respira dentro de um ambiente familiar. Na cidade inglesa há apoio mútuo e as ambições de subir na carreira são partilhadas entre drag queens.
Assim que deu início ao negócio das perucas, Pedro Paiva recebeu inúmeras compras das colegas de trabalho, que fazem questão de ser clientes. Quando é marcada uma performance a tendência é “convidar as colegas, porque é sempre melhor ter duas do que uma”. Pelas ruas londrinas ninguém anda sozinho e juntas garantem mais segurança.
A verdade é que, acima de tudo, existe um vínculo de união. Contudo, não se exclui a possibilidade de haver “uma competitividade saudável” que, aos olhos do artista, é normal como em qualquer outro emprego.
No caminho do progresso
A fórmula mágica para mudar mentes mais conservadoras ainda não chegou a Portugal. Daniel Araújo sente que, desde 2009, ano em que teve início a série “RuPaul’s Drag Race”, a comunidade LGBT tem vindo a ganhar mais visibilidade, no entanto, tal como Pedro Paiva, acredita que “ainda há um longo caminho pela frente”. O conimbricense considera ainda que a Covid-19 se manifestou como “um contributo para a estagnação”, visto que não se tem assistido a qualquer exposição de drag queens.
Goulds expressa a vergonha que sentia quando começou a frequentar a secção de mulher das lojas de roupa. Hoje olha para o assunto com indiferença, mas alerta para a necessidade de “normalizar homens comprarem roupa de mulher que não seja para oferecer à mãe ou à namorada”.
Os dois jovens possuem ideias distintas quanto ao que a cultura drag necessita para se fortalecer. De um lado, Vaselina olha para uma renumeração mais justa e para uma maior representatividade “de pessoas transsexuais, mulheres cisgénero e drag queens” como duas respostas positivas.
“Há demasiadas drag queens. Toda a gente pensa que tem uma voz. Devíamos ser menos e bons, devia haver um filtro. Mas isso não é possível.”
Do outro, com uma visão totalmente oposta, Goulds defende a tese de que “há demasiadas pessoas” na comunidade. “Há demasiadas drag queens. Toda a gente pensa que tem uma voz. Devíamos ser menos e bons, devia existir um filtro. Mas isso não é possível”, esclarece. Na perspetiva de Daniel Araújo, “a toxicidade existente nas pessoas que fazem drag” prejudica a profissão e a afluência da internet veio ainda demonstrar a futilidade presente.
Como membros da comunidade LGBT, Pedro Paiva e Daniel Araújo, ou Vaselina e Goulds, ambicionam assistir ao progresso que, lentamente, tem vindo a mudar mentes e ideais. Vaselina quer continuar a “criar um espaço mais seguro na vida diurna e noturna” com as suas performances. Já Goulds, deseja utilizar o drag como uma ferramenta embebida na versatilidade.
Fonte da capa: gentilmente cedida por Pedro Paiva.
AUTORIA
Sem certezas da área a seguir, a Beatriz acabou por entrar em Jornalismo, em Coimbra. Hoje diz que foi pelo melhor, já que não sabia desenhar para entrar em Moda, mas sabia escrever – e com uma grande paixão. No último ano do curso descobriu o gosto pelo documentário e, por isso, decidiu rumar à capital para estudar no Mestrado de Audiovisual e Multimédia. E, como as saudades do jornalismo já eram muitas, não pode recusar ser Editora de Atualidade.