E também elas gritaram pela “Liberdade”
Durante 48 anos, a palavra liberdade tomou forma nos mais remotos locais de Portugal através de sussurros e palavras secretas que escapavam à censura. Porém, no dia 25 de abril de 1974, este sentimento, pelo qual muitos ansiavam secretamente, foi exposto de forma gritante nas ruas, enquanto os militares punham fim ao último suspiro do Estado Novo.
Nos meses que se seguiram, muitas manifestações foram feitas para exercer este novo hábito da liberdade. Homens e mulheres juntavam-se lado a lado para proclamar os seus direitos. No meio de tudo isto, algumas mulheres olhavam em volta e, no êxtase desta emancipação, forçaram a questão: “Agora que temos a liberdade, o que vamos fazer com ela?”
A pergunta acima foi feita pela escritora e jornalista Maria Antónia Palla. Durante a sua juventude, bem como na atualidade, sempre foi uma figura de renome no que diz respeito à ideia do feminismo português.
“As mulheres são as esquecidas de todas as revoluções”
Bénoîte Groult
O proclamado dia da liberdade fez muito pela população portuguesa como um todo. Após 48 anos, pudemos pela primeira vez ter acesso a um mundo sem censura e poder ditatorial. Pela primeira vez em muito tempo, os portugueses puderam idealizar um país no qual a sua opinião importava. Todavia, nesta história uma parte ficou esquecida.
Também elas gritavam em apoio à liberdade, contudo, na época do 25 de abril, muitas mulheres ainda não tinham direito ao voto e legalmente ainda podiam ser mortas pelos maridos em caso de adultério. O divórcio era um cenário impossível, mas é do conhecimento geral que os tempos de ditadura apresentaram dificuldades para todos os habitantes, fossem homens ou mulheres. Não ignorando esse facto, a mulher foi socialmente colocada num local mais desvantajoso; local este que apesar de muitos desenvolvimentos, continua a ocupar.
A mulher no Estado Novo
Em tempos de ditadura, o ideal da mulher foi de imediato estabelecido no clássico posicionamento de dona de casa. A mulher era esposa e o principal conforto dos seus filhos e marido. Fora as competências domésticas e maternais que lhe eram impostas, pouco mais era incentivado da mulher portuguesa por parte da sociedade. É importante referir que este cenário era apenas verificável numa pequena amostra mais privilegiada. As restantes mulheres, fossem elas chefes de casa devido à morte do marido ou mão de obra por pura necessidade, acrescentavam a estas tarefas o ato de estar no mundo do trabalho. Neste caso, a desvantagem do seu género permanecia exposta, mantendo uma diferença salarial de 40% relativa aos seus companheiros, por trabalho igual. A presença feminina enquanto mão de obra era algo de último recurso, e uma ação que requeria a autorização do marido, pondo em prática a lei do contrato individual do trabalho. Algumas profissões, como as de enfermeira ou professora, poderiam mesmo implicar a reivindicação do direito ao casamento.
A virgindade era uma parte da essência feminina e a sua falta na altura do casamento dava direito a repúdio por parte do marido. Relativamente à saúde sexual e reprodutiva, pouco era feito para a assegurar. O aborto era punido por lei, dando prisão de dois a oito anos, e a publicidade a contraceptivos, assim como a sua receita por parte de profissionais da saúde era totalmente proíbida.
O direito ao voto, como já foi referido em momentos anteriores, não era uma situação muito linear. O direito ao voto era concedido às mulheres que fossem chefes de família e possuíssem curso médio ou superior. Porém, este poderia ser feito apenas em eleições para as Juntas de Freguesia e com o atestado de idoneidade moral. No ano de 1968, a lei alargou o direito ao voto para a Assembleia Nacional a todos os cidadãos que soubessem ler e escrever, fossem homens ou mulheres. Num país cujo analfabetismo era um dos fatores que homogenizava a população, este não foi um ponto extremamente relevante para o aumento da taxa de voto. Contudo, era raro que os poucos que apresentavam instrução suficiente fossem mulheres. Neste caso, as expectativas sociais já referidas em parágrafos anteriores tornavam a instrução das mulheres numa necessidade de segunda, sendo que não contribuía para o que era considerado como necessário nas competências maternais.
As leis que rondavam a mulher do Estado Novo incluíam-na nas suas linhas como um mero acessório ao homem, sendo ele o centro do que deveria ser o seu foco. A mulher era proibida de não residir com o seu companheiro, podendo este até abrir a correspondência que ela recebia.
A mulher de Abril
Apesar do que possamos acreditar, 48 anos de censura e leis exploratórias não desaparecem dos restos portugueses num simples “grito” pela liberdade, principalmente quando esta palavra não representa o mesmo para todas as partes em questão. Contudo, após o 25 de abril, ações foram tomadas para que a mulher pudesse finalmente adotar uma identidade própria, não só numa perspetiva social, mas também legal.
Poucos meses após a revolução dos cravos, foram abolidas todas as restrições que ainda impediam as mulheres de votar. Cargos que antigamente estavam reservados ao sexo masculino abriram as suas portas para o sexo feminino.
No ano de 1975, o casamento católico pode finalmente obter o divórcio civil. Neste mesmo ano, o ato de um homem assassinar uma mulher, fosse por adultério ou outra questão, passou a ser considerado um crime. Em 1976, o homem casado deixa de ter o direito legal de abrir a correspondência da sua amada e o período da licença de maternidade é alargado para 90 dias. Foi também neste ano que surgiram as consultas de planeamento familiar nos centros de saúde materno-infantil.
A legalização do aborto só chegaria em 2007.
Mas…e Abril?
A Revolução dos Cravos não foi tida com o objetivo de reinvidicar os direitos às mulheres. Na verdade, a ideia mais amplamente partilhada pela oposição era a da luta de classes, deixando de lado ideais feministas, que muitas vezes eram considerados como uma mera preocupação de mulheres burguesas. As mulheres que participaram nas manifestações do 25 de Abril fizeram-no com a mesma esperança dos que as acompanhavam, ignorando o degrau que sempre os havia separado. Mas este dia não teve a mesma eficácia para ambas as partes.
Enquanto o homem se viu de imediato num país livre, a mulher viu-se acorrentada às leis que já a prendiam no passado, assim como aos ideais sociais que acompanhavam a sua imagem.
Apesar dos desenvolvimentos feitos, a mulher continua presa ao que restou daquela época. Presa a um tic-tac incessante de um relógio que vai contando as horas, até que os seus companheiros decidam que é tempo de igualdade e liberdade.
Fonte da capa: Diário de Notícias
Artigo revisto por Madalena Ribeiro
AUTORIA
A Mariana está no último ano da licenciatura de publicidade e marketing, mas o seu “bichinho” da escrita parece não a querer abandonar. Abençoada por vários hobbies e interesses, ocupa o seu tempo na ESCS Magazine com um pequeno aprofundamento de “factos interessantes” que os amigos já estão fartos de a ouvir contar.