Femmes Fatales: ícones do empoderamento feminino no cinema
O conceito de mulher fatal permanece nos nossos vocabulários mesmo em contextos e culturas distintas. A representação de uma mulher poderosa, temida e descontrolada, numa perspetiva patriarcal, já estava presente desde a história de Adão e Eva e das sereias da mitologia. Aquando do estabelecimento e do uso de mecanismos e técnicas de cinema noir norte-americano, surge o conceito e a expressão francesa femme fatale. De facto, o idolatrar e o uso desta figura no cinema torna-se um símbolo do empoderamento feminino na indústria, constituindo uma nova visão sobre o papel da mulher enquanto vilã nas histórias de ficção.
Mas, afinal, o que é uma femme fatale? Existem algumas características comuns para definir o que é uma mulher fatal no cinema noir, pelo que a sua representação pode tomar várias formas. Resumidamente, uma femme fatale é uma figura que está ciente da sua sexualidade, das suas paixões e do seu corpo, pelo que não tem medo nem problemas de colocar as suas necessidades acima do outro. De modo geral, ao ser extremamente confiante, é também temida e vista como uma espécie de fruto proibido que seduz – normalmente os homens – para conseguir o que procura, mesmo que isso signifique o mal-estar do outro. Ao colocar o poder de decisão normalmente atribuído a uma personagem masculina numa figura feminina, o cinema noir veio transgredir algumas ideias estabelecidas. Nomeadamente, a ideia de que a mulher deve ser submissa e assumir um papel secundário, que em nada afeta as histórias que integra . Assim, nestes filmes, são as femmes fatales que conduzem o rumo da ação e das personagens principais, culminando no que será o seu destino final.
Os primórdios da conhecida femme fatale estão no filme Double Indemnity (1944), dirigido por Billy Wilder. Neste filme, é Phyllis Dietrichson, a típica housewife, que seduz e se envolve com a personagem principal, Walter Neff, um vendedor dos seguros. Propõe-lhe a morte do seu marido de forma a conseguir o dinheiro de um seguro de vida que este tinha assinado, com a mentira aliciante de um possível futuro juntos. A personagem feminina é uma femme fatale, uma vez que cumpre as características de sedução com um objetivo criminoso, sem nunca sujar as suas mãos. Dada a sua postura convincente, Phyllis provoca a perda e o descontrolo de um homem estável, que se deixou levar pelo seu jogo de sedução.
A partir deste filme surgem outras demonstrações de uma mulher que consegue sempre o que quer, alienando a personagem masculina dos seus objetivos e do seu rumo de vida. Este conceito, possivelmente alicerçado numa espécie de male gaze, desenvolve-se ao longo dos anos, estando presente também nos filmes do período neo-noir – que incluem temas ou elementos visuais não permitidos na época noir. Dentro das femmes fatales mais conhecidas atualmente, com construções completamente distintas, temos como bons exemplos Lara Croft, dos filmes Tomb Raider (2001), Jennifer Check, do filme Jennifer’s Body (2009), e Amy Dunne, do filme Gone Girl (2014).
Lara Croft, representada por Angelina Jolie, é uma personagem acarinhada por todos de diversas formas. A partir de um jogo, a história de Tomb Raider (2001) imerge-nos na história da personagem que tem como missão a recuperação de artefactos antigos. Ao ultrapassar vários obstáculos e lutar pela sua sobrevivência, a personagem demonstra o que é ter na sua mão o controlo do futuro, mesmo sendo uma personagem feminina.
Numa construção cinematográfica completamente distinta, surge Jennifer Check, uma adolescente cheerleader que conta com uma sede de sangue literal. É considerada a vilã da história, que assassina vários rapazes na escola. É tomada como uma espécie de monstro, que deve ser contido e parado, para proteção destes mesmos homens.
Por fim, temos Amy Dunne, que é quase o epítome de uma femme fatale perfeita, se considerarmos como factos o desenho de Phyllis Dietrichson. Esta personagem feminina constrói toda uma teoria à volta do seu falso desaparecimento, sem nunca esquecer o seu objetivo final. A partir do seu planeamento metódico e após ser reportada como pessoa desaparecida pelo seu marido, Amy consegue colocar os holofotes sobre o comportamento deste, levantando várias questões em relação ao papel que poderá ter tido (ou não) na história.
Estas personagens femininas, mesmo que baseadas em ideias patriarcais de como uma mulher fatal, com maior nível de poder, é uma mulher descontrolada, podem, por outro lado, ser símbolos do empoderamento feminino. Ou seja, mesmo construídas sobre uma visão negativa das ações das mulheres nestes filmes, estas desconstroem o que é uma personagem feminina no cinema: quebram a ideia de uma mulher submissa, contrariam o culto da virgindade e fogem de associações maternais. Assim, surge uma mulher que assume um papel preponderante nestas histórias, que destrói o homem, que é superior, mesmo que isso seja a partir das suas características ou atributos físicos.
Fonte da capa: Independent UK
Artigo revisto por Beatriz Morgado
AUTORIA
A Laura não sabe estar quieta. Adora boas recomendações - especialmente de filmes bombásticos - e aceitou a oportunidade de ler mais sobre a área ao ser editora de Cinema e Televisão. A escrita sempre fez parte desta inquietude, com especial atenção para o despejar de emoções após uma sessão de cinema. Coloquem um bom neo-noir, fervam um bom chá de hibiscus e têm a sua companhia para sempre.