Grande Entrevista, Grande Reportagem

A rua que ficou presa no tempo

Estamos no dia 22 de maio de 1998. São nove e meia da manhã e já o primeiro dia da EXPO 98’ recebeu mais de nove mil pessoas, que entraram assim que as portas abriram. São na sua maioria jovens em visita de estudo, idosos em excursão ou estrangeiros em turismo. Porém, partilham do mesmo espírito: a euforia e a felicidade de serem os primeiros a visitar a exposição que mudou para sempre a cidade de Lisboa e também o país. Sente-se o cheiro a futuro, que se espalha por quase todo o Portugal. Quase. Não muito longe dali – na verdade bem perto – o futuro não entrou. Por pouco, mas não entrou.

No contraste das arejadas e claras ruas do espaço da Exposição, fica uma rua que ficou a metros de não sofrer do mesmo tratamento. É a rua limítrofe da zona intervencionada pela Parque EXPO entre 1993 e 1998. Rua Vale Formoso. Em tempos, Rua Vale Formoso de Baixo. Agora perdeu o “ de Baixo”, mas manteve a sua imagem, em contraste com toda a área à sua volta. Mas podia nem ter sido assim: “Foi a CP, foi a Parque EXPO… só faltou o Governo! Iam todos dar-me dinheiro para demolir a casa”.

Quem o diz é Lurdes Guimarães, de 66 anos, e que vive na mesma rua há 46. Mudou-se para lá quando tinha 20 anos e por lá já “andava esta casita”, a 155. Ainda hoje lá está. Com algumas diferenças, mas está. Mas esteve para desaparecer, então, quando nasceu a EXPO’98: “Na altura só me queriam deitar abaixo um bicozinho de gás. A casa foi toda fotografada pela CP e pela Parque EXPO, para o caso disso acontecer”.

Fotografia 1 – Descrição: Parte do 155 de Lurdes esteve para ser demolido

O motivo era o alargamento da linha de comboio, entre as estações de Braço de Prata e a que seria nova, do Oriente. Porém, a casa manteve-se. Não foi necessário demolir nada… infelizmente. “Preferia que a tivessem demolido! Desde aí que a casa só me deu problemas: tive azar com empreiteiros, arquitetos… ainda hoje estou à espera que me aprovem uns planos para corrigir alguns maus trabalhos da altura! Só há uns meses é que acabei as telas finais da casa”.

Apesar de atribuir grandes méritos à Exposição Mundial, Lurdes aponta dois grandes problemas que a iniciativa reforçou naquela zona – em particular na sua rua: as acessibilidades e a segurança. Os 66 anos já começam a pesar para quem tem de andar cerca de um quilómetro para encontrar o supermercado mais próximo.

A missão fica mais difícil por não haver transportes: “Estamos isolados. Antes da EXPO tínhamos autocarros da Carris, o 39 e o 28. Desde essa altura que desapareceram. Prometeram-nos transportes e ainda nada. Temos uma carrinha pequena que faz transporte ‘porta-a-porta’, para nos levar aos talhos, mas não chega, ainda mais para gente idosa”, desabafa Lurdes.

Fotografia 2. – Descrição- A distância entre a casa de Lurdes e um dos supermercados mais próximos

 

Isolados e fechados. O muro que percorre um dos lados da rua deixa um sentimento de enclausuramento para quem não está habituado a vê-lo todas as manhãs. Para Lurdes, não a incomoda. Aliás, deixa-a mais segura, face a outro dos problemas deixados pelos tempos da Exposição: “Para lá do muro há muita ‘gandulagem’! Ainda bem que o deixaram ficar, até porque desde esse tempo que o ambiente ficou pior. Tínhamos aqui ao lado a petroquímica, que tinha seguranças e vigilantes, que deixavam isto mais seguro. Desde aí que é raro não haver carros partidos, riscados… até eu já fui assaltada!”.

 

«Antes da EXPO tínhamos autocarros da Carris, o 39 e o 28. Desde essa altura que desapareceram»

 

Não foi a única. Basta andarmos 10 metros e chegamos à porta 141. Lá dentro encontramos uma família peculiar. Uma mãe e dois gémeos. Desengane-se se acha que encontrámos juventude: 232 anos de vidas, repartidos pelos 92 anos da mãe, Maria Gedónia, e dos setentas de António e da sua irmã. Também eles já foram assaltados, mas a perspetiva altera-se: “Antes da EXPO era só gatunos nestes montes de lixo! Chegaram a assaltar-nos a casa por três vezes. Depois, nunca mais”, diz Maria, numa entrevista dada ao longe, por estar de muletas.

Já o filho não se coibiu: levou-me a mostrar a casa de dois andares, enquanto contava a história do seu divórcio, que resultou na posse de dois andares: aquele, na rua que ficou presa no tempo, e outro, na Amadora. Quando lhe pedi para escolher a preferida hesitou: “Eu gosto muito de cá estar, esta é a minha casinha, meu querido. Vivo cá há 42 anos. Mas aqui não há muito… não há um café para tomar a bica, não há mercearia… o que me vale é que gosto muito de andar a pé, dou muitos passeios!”.

Fotografia 3 – Descrição – António, à porta da casa onde vive há mais de 40 anos

 

Mas nem o isolamento muda a imagem positiva da EXPO. Apesar de nunca ter visitado a Exposição, António diz que “foi ‘muita’ bom para a rua e para toda a cidade”, apoiado pela mãe, que relembra, do fundo do corredor, que antes da exposição só havia lixo naquela zona. “Cheirava mal, era tudo mais escuro e havia gatunos por todo o lado. Eu é que não quero nada com eles, mas alguns também já foram apanhados. Mas isso foi há muito tempo, eu é que sou da idade da pedra!”. Vive ali há 47 anos.

«Antes da EXPO era só gatunos nestes montes de lixo! Chegaram a assaltar-nos a casa por três vezes»

 

Morava Maria naquela casa há já sete, quando António Bernardino, da porta nº131, chegou à Rua Vale Formoso. Quando se mudou para aquela casa tinha passado os quarentas. Quando nasceu a Exposição Mundial, estava a entrar na terceira idade. Agora, com 85 anos, olha para as mudanças à sua volta com felicidade: “Esta zona não era assim muito limpa, havia papéis por todo o lado. Depois, com a EXPO, as coisas ficaram melhores. Mais ou menos na mesma, mas melhores”.

Fotografia 4  – Descrição – “Caí há uma semaninha, mas estou a melhorar.” A mão ligada de Bernardino, que cuida do 131 da Rua Vale Formoso há mais de quatro décadas

 

A zona de intervenção da EXPO contemplava 150 mil metros quadrados, que iam desde a zona de Moscavide até Cabo Ruivo. Um investimento de 150 milhões de euros, financiado pelo BIE – Bureau International des Expositions, comité organizador das exposições – permitiu que toda uma zona de estaleiros e fábricas se transformasse num espaço vindo do futuro.

Fotografia 5 -Descrição –  A zona de intervenção da EXPO’98, a vermelho, num dos seus planos de pormenor. A amarelo a Rua Vale Formoso

 

“Olhe, eu estava internada quando mandaram tudo abaixo. Fui operada a uma das pernas. Os meus filhos é que me contaram. Quando cheguei nem acreditava no que via”. A frase é de Lurdes Guimarães, a imagem é da petroquímica ou daquilo que resta dela. “Já me disseram que o terreno agora pertence ao Vieira, o do Benfica, mas ninguém sabe se é verdade”, acrescenta.

O certo é que todas as infraestruturas da antiga Petrogal foram demolidas, à exceção dos “esqueletos de ferro” que suportavam os gigantescos tanques da petroquímica. Esses, por lá, ainda servem de paisagem para todos aqueles que acordam na Rua Vale Formoso: “Aquilo, para ser mandado abaixo, tem de ser com umas máquinas especiais, muito grandes. Já as vi uma vez cá, mas ainda bem que não destruíram, é uma recordação!”, diz António.

Fotografia 6 – Descrição –  As estruturas de ferro da petroquímica, guardadas por um sufocante muro

 

As obras, essas, não incomodaram: “Havia algum pó, mas antes as ruas também eram sujas”, diz Maria Gedónia. Bernardino partilha da opinião: “Tudo muito calmo, parecia que estava longe. Nem havia barulho, sequer!”. As obras de construção da Exposição duraram cinco anos, de 1993 a 1998.

Quando esse último ano chegou, Lisboa e o país mudariam para sempre. A Rua Vale Formoso e a zona à sua volta também. Dos quatro vizinhos, apenas António e a sua mãe não visitaram a Exposição. Lurdes fê-lo uma vez. Bernardino visitou-a por três ocasiões para nunca mais voltar: “Era uma novidade. Vi coisas que nunca tinha visto na vida. Depois acho que não fui lá mais, até porque tive um AVC entretanto e custa-me andar muito e estar fora de casa”.

 

Teria muita coisa para ver se pudesse. Desde que a EXPO’98 encerrou, em outubro de 1998, que mudou de nome para Parque das Nações. Tornou-se o maior centro empresarial de Lisboa. Passou a ser freguesia em 2012. É uma das mais jovens e a que tem rendas de casa mais caras de todo o país. Já a Rua Vale Formoso continua ali, a olhar para ela. Presa no passado, em Marvila, mas com um pé no presente, que um dia foi futuro. Já passaram 20 anos.

Artigo corrigido por Vera Santos.