As Orcas e o Limite do Amor: quando o cativeiro se disfarça de cuidado
Dentro do tanque
As orcas sempre foram símbolo de poder, liberdade e inteligência. Nos oceanos, percorrem dezenas de quilómetros por dia, comunicam entre si com sons complexos e formam laços familiares duradouros. No entanto, dentro dos tanques de parques aquáticos, esse mesmo instinto torna-se uma bomba-relógio.
As orcas são criaturas de um mundo que nós, humanos, teimamos em domesticar. E, talvez, seja aí que tudo começa a correr mal.
Os ataques a treinadores, como o caso trágico de Dawn Brancheau no SeaWorld em 2010, chocaram o mundo e levantaram uma questão inevitável: por que razão um animal tão inteligente ataca alguém com quem convive todos os dias?
O ataque como linguagem
A ciência é clara: o ambiente artificial altera profundamente o comportamento das orcas. Confinadas a espaços minúsculos, sem estímulo e com rotinas rígidas, sofrem de stress crónico. Estudos mostram que desenvolvem comportamentos repetitivos, apatia e até autolesões, sinais típicos de sofrimento psicológico. Nos parques, a relação entre cuidador e orca é construída à base de recompensas, tais como peixe em troca de obediência. Mas, quando o animal se sente frustrado, ansioso ou privado, essa relação pode quebrar-se. Pequenos erros durante o treino ou o simples desrespeito do “ritual” podem ser interpretados como provocação, despertando reações violentas. O que para nós é um momento de falha ou distração, para elas é frustração acumulada. O ataque, na maioria das vezes, não é raiva, é desespero. É a linguagem do corpo a dizer “basta”.
O que o cérebro delas esconde
O cérebro de uma orca é maior do que o de um ser humano e até mais complexo em certas regiões, especialmente nas ligadas à empatia, emoção e memória social.
Isto significa que elas se lembram de tudo e que sofrem não só pela falta de liberdade, mas também pela ausência daqueles que amam.
Quando capturadas, muitas orcas choram sons que os investigadores descrevem como “chamamentos de perda”. Chamam pelas mães, ou pelas crias, e as mães chamam de volta, mesmo quando já não há resposta.
O cativeiro rouba-lhes a família e a casa, mas nunca a memória.
Entre o amor e o controlo
Há algo de profundamente contraditório na relação entre treinadores e orcas. Durante anos, a indústria construiu a imagem do “cuidar com amor”. Mas o amor que retira liberdade é apenas uma versão disfarçada de posse.
Eu acredito que muitos cuidadores amam verdadeiramente as orcas. Contudo, o sistema em que trabalham transforma esse amor em algo tóxico, porque o enquadra num espaço onde a vontade do animal é anulada.
Quando a orca ataca, não ataca só o humano – ataca o sistema. Ataca o símbolo de tudo o que a oprime.
O caso de Tilikum
Nenhuma história traduz melhor esta dor do que a de Tilikum, a orca que se tornou o rosto do documentário Blackfish, da Netflix.
Tilikum foi capturado no mar com dois anos de idade. Passou mais de três décadas em cativeiro. Matou três pessoas, entre elas a treinadora Dawn Brancheau, em 2010, num espetáculo no SeaWorld.
Depois disso, Tilikum passou os últimos anos de vida isolado. Continuava a nadar em círculos, continuava a obedecer. Mas quem olhava nos olhos dele via que já não havia vida, só resistência; é impossível culpar um ser assim.
A natureza como entretenimento
Vivemos numa era em que a natureza se tornou entretenimento. O público quer emoção, quer selfies, quer histórias bonitas de “amizade”. Mas a verdade é que o que acontece nos bastidores é tudo menos bonito.
As orcas são mantidas com fome para que obedeçam, privadas de sono e obrigadas a partilhar tanques com outras orcas de populações diferentes, o que gera conflitos violentos. É um cenário de sofrimento constante escondido sob o disfarce do espetáculo. E nós assistimos, sorrimos e tiramos fotos.
Chamamos-lhes “baleias assassinas” e esquecemo-nos de olhar para nós próprios.
Reflexo do ser humano
Sempre pensei que estudar as orcas era uma forma de compreender o mar. Hoje, percebo que é uma forma de nos compreendermos a nós mesmos.
Elas são o espelho mais puro do que fazemos com o poder: confinamos o que não compreendemos e chamamos a isso civilização.
Às vezes penso que as orcas são a metáfora mais triste que reflete o ser humano. Nós também vivemos presos em rotinas, dentro de espaços demasiado pequenos para o tamanho dos nossos sonhos. Sorrimos para o público quando, por dentro, lutamos para respirar.
O problema nunca foi o animal, mas sim a nossa necessidade de controlar a beleza em vez de a contemplar.
O cativeiro é o reflexo da nossa arrogância, a crença de que tudo o que admiramos nos deve pertencer e o espelho da nossa própria sociedade.
A ciência como empatia
Nos últimos anos, a biologia marinha e a neurociência têm ajudado a revelar o que já devíamos saber intuitivamente: as orcas têm uma consciência emocional complexa. Formam laços familiares que duram toda a vida, comunicam com dialetos próprios, e até mostram sinais de luto quando um membro do grupo morre. Estudos de investigadores da Whale and Dolphin Conservation e da National Geographic confirmam que os níveis de cortisol (a hormona do stress) nas orcas em cativeiro são drasticamente superiores aos das orcas selvagens. Traduzido por palavras simples, elas vivem permanentemente em estado de alerta, sem dar descanso ao corpo.
O que significa libertar
Há quem diga que as orcas nascidas em cativeiro já não saberiam viver no oceano. Talvez seja verdade, mas isso não justifica continuar o ciclo.
Hoje, há projetos de santuários marinhos, espaços amplos, semi-naturais, onde as orcas podem viver com dignidade, sem espetáculos e sem grades. Lugares que tentam devolver-lhes um pedaço do mar, mesmo que nunca seja o mar inteiro.
Libertar, às vezes, não é abrir uma porta: é mudar a forma como olhamos para quem está do outro lado.
O que mais me marca nestas histórias não é o ataque nem o medo: é o silêncio que vem depois. O tanque fica calado, a água volta à calma e toda a gente finge que foi “um acidente”. Mas há acasos que não são acasos e sim sinais. O maior deles é que quanto mais queremos controlar a natureza, mais ela nos mostra que não nasceu para ser controlada. As orcas não atacam por ódio, mas porque já não têm outra linguagem. E nós, que tanto nos orgulhamos de compreender o universo, ainda não aprendemos a compreender o que significa estar vivo.
Se existe uma lição nas suas barbatanas cortadas e nos seus gritos silenciosos é que a liberdade não deveria ser um luxo. E, se continuarmos a confundir amor com controlo, o tanque continuará cheio e o mar vazio.
Fonte da capa: Colagem feita pela redatora
Artigo revisto por Raquel Bernardo
AUTORIA
Joana, 18 anos, adora explorar o mundo à sua maneira. De espírito criativo e comunicativo, encontrou na escrita formas de unir as suas paixões: compreender, questionar e dar voz ao que a inspira. Fascinada por música e pelos anos 2000, curiosa por natureza e apaixonada pela escrita, procura constantemente novas formas de se comunicar com as pessoas.




