Moda e Lifestyle

Constança Entrudo e Olga Noronha- do tecido ao conceito

A moda, enquanto linguagem, tem o poder de ultrapassar o visível e transformar-se em experiência, pensamento e presença. Em Portugal há duas vozes que se destacam pela forma como expandem a relação entre corpo, tecido e significado: Constança Entrudo e Olga Noronha. Ambas constroem universos profundamente distintos, mas unidos por uma inquietação comum — a de usar a moda como experiência artística e conceptual.

Constança Entrudo: matéria, humor e narrativa

O trabalho de Constança tem como base a investigação têxtil. Não se limita a tecidos prontos: desenvolve materiais, manipula superfícies e experimenta técnicas como o “(un)woven”, impressão digital, bordados e efeitos de ilusão ótica. A simplicidade das silhuetas — blazers, vestidos ou saias do dia-a-dia — é contraposta por acabamentos ricos, superfícies complexas e contrastes que dão vida à identidade visual da marca.

Cada coleção nasce de uma ideia ou metáfora, seja a exploração da meritocracia em Second Best ou a ligação à Madeira, à natureza e à memória. Entrudo constrói narrativas que ultrapassam a roupa: o humor e o surrealismo surgem em truques visuais que surpreendem e provocam, enquanto que a apresentação incorpora som, luz, cenografia e performance, criando uma experiência interdisciplinar.

A sustentabilidade e a produção local são centrais. Entrudo mantém uma relação próxima com fornecedores portugueses e recorre a materiais reciclados ou técnicas que desafiam processos convencionais, articulando tradição e inovação. A sua força reside na capacidade de reinventar o tecido, equilibrando irreverência e rigor técnico, identidade portuguesa e alcance internacional, arte e usabilidade.

Fonte: Pinterest

Olga Noronha: o corpo como interlocutor

Olga Noronha constrói moda a partir de um território interdisciplinar, onde joalharia, objeto, escultura e ciência se encontram, desafiando as fronteiras do que é considerado vestível. Desde 2011, desenvolve o conceito Medically Prescribed Jewellery®, criando peças que dialogam com a anatomia e com o potencial funcional ou simbólico do corpo. A moda, aqui, não é ornamento, é reflexão incorporada.

O corpo surge como plataforma ativa: as peças apoiam-se, aderem ou tensionam, criando relações com o movimento e o espaço. Noronha trabalha materiais rígidos, como metais e recortes precisos, transformando-os em formas delicadas e quase orgânicas. A inspiração biomédica e anatómica convive com técnicas tradicionais, como a filigrana, reinterpretadas em linguagens experimentais.

Os seus projetos exploram estados liminares, memória e perceções oníricas, como na coleção HIPNAGOGIA, e são apresentados de forma performativa e disruptiva. A sua estética é simultaneamente poética e cirúrgica: do detalhe minucioso à instalação imersiva, cada peça nasce de pesquisa aplicada e pensamento crítico.

Convergências e contrastes

Embora tenham como ponto de partida caminhos distintos, Entrudo e Noronha convergem num mesmo impulso: o de devolver profundidade à moda, como experiência conceptual. Entrudo trabalha a superfície e a matéria como narrativa. Noronha parte do corpo para explorar tensão, densidade e introspeção. Uma reinventa o tecido e a outra questiona a anatomia. Ambas expandem os limites do vestível.

Fonte: Pinterest e https://www.olganoronha.com/hipnagogia)

Impacto na ModaLisboa 2025

As duas criadoras marcaram presença na ModaLisboa, no passado mês de outubro, com Constança Entrudo a ter também participado na edição de março deste ano.

Foi a 7 de março de 2025 que Constança apresentou a sua coleção de outono/inverno Second Best, uma coleção que se debruça sobre a obsessão da sociedade com vencedores e perdedores, celebrando o “segundo lugar”, que costuma ser negligenciado, e examinando o lado desmoralizante da meritocracia. Ao trabalhar com arte têxtil em contexto de moda, Constança quer subverter a ideia de que os têxteis são apenas função ou pano de fundo, posicionando o tecido como sujeito protagonista.

A apresentação da coleção ocorreu no Centro de Arte Moderna Gulbenkian, em forma de instalação têxtil, num espaço imersivo onde era possível estabelecer a relação entre os espaços que habitamos e o estado emocional de quem os vive.

Inspirada no vestuário desportivo dos Jogos Olímpicos dos anos 80, a coleção destacou superfícies cuidadosamente trabalhadas: impressões prateadas sobre tecidos delicados feitos artesanalmente, malhas que evocam veludo e tafetás plissados manualmente.

Esta coleção foi complementada, no dia 5 de outubro de 2025, por um lançamento especial no Castle Hi Hi Hi, localizado em Lisboa, em colaboração com a marca Humana, que consistiu numa coleção cápsula com peças disponíveis para compra imediata, permitindo aos visitantes adquirir as criações diretamente. Esta coleção personifica não só uma crítica, como também uma solução face ao sistema de produção excessiva da moda, promovendo a reutilização têxtil e a sustentabilidade.

Fonte: website da ModaLisboa

 Nos dias 4 e 5 de outubro, Olga Noronha apresentou no MUDE, Museu do Design,  uma mostra expositiva chamada LaBscapes, resultado de uma investigação estética da paisagem, da forma e da matéria. A exposição reuniu obras site-specific e “Lab Paintings©” desenvolvidas a partir de processos laboratoriais e experiências sensoriais, explorando variações de cor, emoção e percepção.

A mostra “LaBscapes” permite que o público interaja com sua investigação visual, evitando que apenas assista a uma coleção para passarelle e fomentando um tipo de diálogo mais íntimo entre a obra e o espectador.

Fonte: website da ModaLisboa

Um olhar final

Constança Entrudo e Olga Noronha desafiam a ideia de que a moda é apenas superfície. Cada uma, com a sua linguagem, transforma o ato de vestir num exercício de consciência sensorial, emocional e conceptual.
Entrudo devolve ao tecido a sua expressividade e, por sua vez, Noronha debruça-se sobre o peso simbólico do corpo que a habita. Juntas compõem um retrato denso e plural da moda portuguesa contemporânea,  uma moda que pensa, sente e comunica.

 Fonte da capa: Colagem feita por Beatriz Reis, com imagens do website da ModaLisboa

Artigo revisto por Mariana Céu

AUTORIA

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A Bia é uma estudante movida por imensas paixões, desde tudo o que passa pelo mundo das artes, até aos países e lugares que quer percorrer pelo mundo. Entre este universo de interesses, está a escrita: uma área que a mini Bia alimentava ao escrever livros de mistério e fantasia. Agora, já adulta, procura escrever sobre aquilo que a entusiasma, dando voz à curiosidade e à liberdade criativa que a acompanham.