“Enola Holmes”: A Irmã Que Rouba (E Bem) O Protagonismo
‘Enola Holmes’ chegou à Netflix a 23 de setembro. Um mês depois, continua no top10 de filmes mais vistos da plataforma de streaming, tendo permanecido, inclusive, vários dias em primeiro lugar. Mas o que explica tamanha popularidade? Justifica-se sequer? Depois de assistir à película, tirei as minhas conclusões. Venho ajudar-vos a tirarem as vossas.
Em primeiro lugar, é importante contextualizar. Trata-se de uma adaptação da saga literária de Nancy Springer, ‘The Enola Holmes Mysteries’. A escritora americana lançou o primeiro livro da saga em 2006 e o último em 2010. São, no total, seis volumes. O filme disponível na Netflix é uma adaptação do primeiro, ‘The Case of the Missing Marquess’. Galardoada, Springer inventou a história enquanto fã de Sherlock Holmes. Como percebia que seria inconcebível o detetive ter uma filha, atribuiu-lhe uma irmã mais nova que nunca existira em nenhum dos livros do detetive, também ele personagem fictícia.
A história desenrola-se quando, no seu 16º aniversário, Enola acorda e apercebe-se de que a sua mãe, Eudoria, com quem vive, desapareceu. Sozinha e desesperada, encontra algum conforto quando os seus dois irmãos mais velhos, Sherlock e Mycroft, regressam em seu auxílio. O sentimento de solidão perdura, pois, como o seu nascimento não foi planeado, existe uma grande diferença de idades – 20 anos, no caso de Sherlock. Acaba por mal conhecer os irmãos, que saíram de casa quando ainda era muito nova. Sente-se incompreendida e negligenciada. Em adição, os irmãos estão decididos a dar-lhe a educação que nunca teve: a de uma lady.
A sua mãe não a educou para ser a típica senhora de casa. Como explica no trailer, “ao contrário das outras senhoras, nunca me ensinaram a bordar. Ensinaram-me a observar e a escutar. Ensinaram-me a lutar.” Este tipo de comportamento, inaceitável na época, exige, na opinião dos irmãos Holmes, medidas drásticas. Mas Enola tem outros planos e uma mãe para encontrar. A Escola de Etiqueta pode esperar.
Curiosamente, desde cedo que a mãe incutiu em Enola o interesse por puzzles, charadas, investigação, no geral (não fosse ela irmã do famoso detetive infalível). Então, quando desaparece, deixa para trás várias pistas, na esperança de que Enola lhes siga o rasto. Isso e dinheiro, para garantir a sua sobrevivência autónoma que sempre desejara. A adolescente não desilude, pondo em prática os conhecimentos que adquiriu ao longo dos anos e servindo-se da cumplicidade que sempre caracterizou a relação com a mãe.
Ao sentir que os seus irmãos não passavam de impotentes, decide fugir de casa e tentar resolver o problema sozinha. Eis que, no início da sua cruzada com destino a Londres, tropeça em mais um caso: o de Tewksbury. Também ele um adolescente que foge de quem quer impor-lhe um caminho diferente do que pretende. Juntos, tentam levar a sua avante, mas são várias as contrariedades. Entretanto, Enola ajuda Tewksbury, procura a mãe e esconde-se dos irmãos. Duplo salvamento.
Fico-me por aqui, pois, se vos contar o filme todo, deixam de o querer ver. E o meu objetivo é conseguir exatamente o oposto. ‘Enola Holmes’ é uma lufada de ar fresco. A história de Sherlock é já conhecida por todos e foi várias vezes recontada. Desta vez, o protagonismo é assumido pela sua irmã, que, com base no filme, deveria ter existido, pois é o máximo. Muito se deve, é certo, à prestação de Millie Bobby Brown. O seu talento não é novidade, mas vemos agora uma versão engraçada e mais adulta da atriz. E encaixa na perfeição.
A ação decorre na Era Vitoriana, o que, por si, a torna interessante, bem como o sotaque britânico e o vocabulário antiquado que ecoam pelo filme. A fotografia é alegre e cuidada, os adereços são icónicos e o vestuário idem. No fim das duas horas de duração, somos deixados a desejar mais. Uma sequela, talvez, tendo em conta haver material para tal e, sem dúvida, interesse por parte do público. Com argumento de Jack Thorne e realização de Harry Bradbeer, conquistou 92% de aprovação por parte dos críticos no Rotten Tomatoes.
O elenco é um dos pontos fortes do filme. A protagonista é, como referi anteriormente, retratada por Millie Bobby Brown, mais conhecida por Eleven de Stranger Things. Os seus irmãos, Sherlock e Mycroft, são interpretados, respetivamente, por Henry Cavill (aka Super Homem e The Witcher) e por Sam Claflin (de Peaky Blinders). A mãe, Eudoria, é protagonizada por Helena Bonham Carter (de The Crown e tantos outros). Já Tewksbury ficou a cargo de Louis Partridge, um talento em ascensão. Também atuam Adeel Akhtar (Inspetor Lestrade), Fiona Shaw (Miss Harrison), Frances de la Tour (The Dowager), Susie Wokoma (Edith), Queime Gorman (Linthorn), David Bamber (Sir Whimbrel) e Hattie Morahan (Lady Tewksbury).
Sentimo-nos parte do filme e desejamos ser, efetivamente, amigos de Enola. O fitar a câmara contribui muito para isso, mas não é suficiente. A personagem está bem construída, exibe uma personalidade simpática, cómica e astuta e, claro, acertaram na escolha da sua intérprete. Conquista desde cedo o nosso respeito e consegue trapacear o melhor dos detetives. A competição entre os dois é prazerosa e Henry Cavill consegue, sem roubar o protagonismo e com poucas palavras, vestir lindamente a pele de mais uma personagem. Já Sam Claflin, que recentemente se tem aventurado nos papéis de mau da fita, evidencia o porquê de ser eleito para isso mesmo. É escusado comentar o desempenho de Helena Bonham Carter, que desconhece o fracasso.
Se não tens já razões suficientes para te dirigires imediatamente para a Netflix, eu continuo: o empoderamento feminino é explorado de forma subtil, mas decisiva; a narrativa tem vários desvios inesperados e fantásticos; não tem o típico final perfeito e sim uma lição valiosa… Enfim. É uma pena que, devido à pandemia, tenha sido encaminhado para o streaming em vez de, como estava previsto, ser distribuído nos cinemas pela Warner Bros. Pictures.
Termino esta crítica com uma curiosidade. A autora baseou-se na sua própria infância para criar Enola. Durante o crescimento, foi ensinada a ser gramaticamente correta e a conhecer literatura vitoriana. Os pais reprimiam as suas emoções e também tinha dois irmãos bastante mais velhos, que foram para a universidade, deixando-a em casa com os progenitores. A mãe era artista e, devido à doença, acabou por passar menos tempo com Nancy. Os paralelos são evidentes.
Artigo escrito por Mariana Coelho
Artigo revisto por Ana Sofia Cunha
AUTORIA
Depois de integrar a maioria das secções da revista, a Mariana ficou encarregue de incumbir esta paixão aos restantes membros. O gosto pela escrita esteve desde sempre presente no seu percurso e a licenciatura em Jornalismo veio exacerbar isso mesmo. Enquanto descobre aquilo que quer para o futuro, vai experimentando de tudo um pouco.