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“Muito do segredo do humor está na surpresa.”


Entrevista a Joana Marques – Parte II


A segunda e última parte desta entrevista centra-se no humorismo e no guionismo. 


Podes ouvir a entrevista completa aqui:

Mede pouco mais do que 1,50m, mas isso não a impediu de chegar ao Canal Q e à Antena 3.
 Quando era – ainda mais – pequena queria ser escritora ou pintora; hoje é guionista nas Produções Fictícias. 
É também apresentadora do programa “Altos e Baixos” do Canal Q e locutora na Antena 3. Ao lado de Ana Galvão anima, das dez à uma, as manhãs da Antena 3 no programa “As Donas da Casa”. Para além disto é uma Lisboeta do Futebol Clube do Porto que come sushi.

Parte II - Foto 1

És guionista na área do humor e atualmente escreves para o programa “Donos Disto Tudo” da RTP. Ser humorista é uma profissão ou é um modo de estar na vida com o qual ganhas dinheiro?
Sim, acho que é mais a segunda hipótese. Acho que é impossível teres uma maneira diferente de estar na vida e depois só das nove às cinco seres guionista ou humorista, neste caso, ou escreveres guiões de humor e depois no resto do dia seres uma pessoa super sisuda e que não está atenta… Sisudo até podes ser porque muitos humoristas têm um lado assim mais carregado e mais triste, mas tens de ser sempre muito observador. Não é uma profissão que tu possas desempenhar só naquelas horas porque tu tens que ir buscar as inspirações e as coisas que te fazem ter ideias a qualquer momento da tua vida. Mesmo quando vais de férias; aliás, eu acho que é quando eu vou de férias que se calhar tenho mais ideias. Isto porque sais daquela rotina diária em que estás ocupado com coisas e sempre que vês coisas novas começas a ter ideias para novos sketches, para novos guiões, seja para o que for. Portanto, sim, acho que é uma maneira de estar na vida e isto é uma discussão que se tem muito. Às vezes há cursos de humor, de escrita de humor… Eu acho que é difícil de ensinar. Ainda bem que há professores que o ensinam e que há técnicas, obviamente, mas acho que é aquela coisa que já tens que ter ali, já tens que ter uma perspetiva cómica sobre as coisas sempre. Se foste sempre uma pessoa que levou tudo muito a sério e que não vê humor… Às vezes dizemos uma piada para pessoas que não têm o mínimo sentido de humor, não há ironia, não há nada. Acho que é muito complicado uma pessoa dessas querer ser humorista; é estar a forçar quase o impossível. Obviamente que há técnicas e coisas que podes aprender, mas acho que já tem de vir de ti. Da mesma maneira que, se calhar ­ voltando um bocadinho ao futebol ­ um jogador de futebol do estilo do Ronaldo não se consegue fabricar. Ele já tinha ali aquilo, depois obviamente que foi muito trabalhado. Olhamos para ele há dez anos e para o que é agora e não tem nada a ver, mas já havia qualquer coisa. Se me pusessem lá a mim ou a qualquer rapaz sem qualquer talento, aquilo não dava.

“Eu acho que (o humor) é difícil de ensinar.”

“Há técnicas e coisas que podes aprender, mas acho que já tem de vir de ti.”

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Quando vês aquilo que escreveste num guião a ser interpretado no produto final consegues rir­-te na mesma ou olhas para as piadas que escreveste de um modo mais analítico, mais crítico?
Sim, dificilmente me rio com coisas que eu já sei. Para já porque eu acho que muito do segredo do humor está na surpresa. O método todo em que constróis um guião é para haver surpresa e normalmente é no momento da surpresa que há o riso. Portanto, eu já não vou ser surpreendida. Embora às vezes possa acontecer os atores terem acrescentado coisas que eu não saiba e mais facilmente me vá rir – nem que seja um detalhezinho de nada, uma frase, mas que eu não soubesse que eles fossem dizer. Mais facilmente isso me dá vontade de rir do que o resto porque o resto eu já conheço e também porque estou sempre mais ou menos em tensão para ver como é que ficou. Muitas vezes já acho que não tem graça nenhuma, ou seja, estou a ser sempre muito crítica com o trabalho. Mais facilmente me rio com coisas feitas por outras pessoas e mesmo nessas às vezes tenho dificuldade em não estar a analisar – do tipo “deixa lá ver o que é que ele fez aqui” – e em estar só como espectadora. Acho que isso perde­se um bocadinho, mas é provavelmente assim em todas as profissões. Se calhar o médico que vai ao médico também está a ver o que é que o outro colega está a fazer.

“Muito do segredo do humor está na surpresa.”

“Normalmente é no momento da surpresa que há o riso.”

“Estou sempre mais ou menos em tensão para ver como é que ficou.”

“Mais facilmente me rio com coisas feitas por outras pessoas e mesmo nessas às vezes tenho dificuldade em não estar a analisar.”

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No final do ano passado disseste numa entrevista: “Não tinha grande vontade de interpretar os textos que escrevia, tal como não tenho hoje”. Porquê? Se fosse na rádio seria mais fácil do que, por exemplo, na televisão?
Sim, a rádio diverte­-me mais de uma forma geral por causa da questão da simplicidade. A televisão obviamente hoje já não é um esforço tão grande como era no início. Por exemplo, nós agora em março fizemos o “Altos e Baixos” ao vivo. Fizemos duas noites e tencionamos agora fazer mais. Correram bem: as pessoas não sabem o que fazer ao seu dinheiro e gastam nisso (tom de brincadeira). Soube muito melhor porque é uma coisa muito mais interativa, tens logo ali o feedback imediato das pessoas para o bem ou para o mal. Felizmente correu bem, mas é uma coisa que dá mais adrenalina, tal como a rádio dá. Agora analisando, eu acho que é isso de que eu não gosto tanto na televisão porque estamos num estúdio sem janelas, sem ninguém, só com os câmaras e com o realizador, que está na régie. É uma coisa um bocadinho solitária, ou seja, as pessoas depois veem em casa passado uma semana e até nos enviam muitas mensagens. Hoje em dia há o Facebook e [as pessoas] reagem imediatamente e dizem que gostam, mas não é a mesma coisa que ter as pessoas ali. Se calhar se um dia fizer um programa em direto, já consigo combater um bocadinho essa falta de adrenalina e de estímulo que há num programa gravado. Quase toda a gente, por exemplo, que nos fala do programa “Altos e Baixos” vê gravado, diz: “Ah, gravo sempre”. Hoje em dia as maneiras de medir as audiências já estão a ser pensadas de outra forma porque já não faz sentido ligar só às pessoas que estão a ver naquela altura.

“A rádio diverte­-me mais por causa da questão da simplicidade.”

“A televisão obviamente hoje já não é um esforço tão grande como era no início.”

“Se calhar se um dia fizer um programa em direto já consigo combater um bocadinho essa falta de adrenalina e de estímulo que há num programa gravado.”

Parte II - Foto 5 Parte II - Foto 6

Falaste agora do “Altos e Baixos”. Há algum “tesourinho” que tu destaques, que seja para ti o melhor de todos eles?
É muito difícil… Já fazemos (o programa) desde 2012, portanto, já houve de tudo. Claro que para nós dá mais gozo quando sentimos que descobrimos algo (entre aspas). Hoje em dia ninguém descobre nada porque é tudo muito rápido, mas não nos dá tanto gozo ir analisar um vídeo que já toda a gente viu. Dá­-nos mais entusiasmo trazer uma personagem que a maioria das pessoas não conheça. Aconteceu em tempos com o “Xerife Penas”, que é uma personagem que eu aconselho toda a gente a espreitar no YouTube e que não era de facto muito vista. Eu faço muito esse trabalho de pesquisa e gosto de quando chego a um vídeo e vejo que ele tem 100 views ou 200; quer dizer que quase ninguém viu aquilo. Quando chegamos a um que já tem 200 mil views, pronto, nós vamos lá e obviamente fazemos a nossa análise, mas já não temos aquele sentimento de descoberta. Mesmo assim achamos graça que muitas vezes surjam vídeos pela net que já toda a gente viu e que as pessoas nos enviem porque querem ver a nossa análise sobre aquilo. Isso para nós é bom, ou seja, mesmo que a matéria­-prima em si já seja boa, as pessoas ainda querem por cima a tal camada do nosso gozo, da nossa sátira – isso para nós é divertido, mas destacar um em tantos é impossível.

“Não nos dá tanto gozo ir analisar um vídeo que já toda a gente viu.”

Falaste agora do feedback (retorno) das pessoas e tu dizes que “a crítica construtiva é o novo lince ibérico ­ está em vias de extinção” e que “as redes sociais trazem à tona um número assustador de pessoas que investem todo o seu tempo, e aparentemente é muito, em agressões.” É sempre fácil ter sentido de humor nestes casos?
Ahhh, não. Para sermos sinceros ­ falo em geral pelas pessoas que têm de lidar com essa crítica ­ acho que ninguém gosta. Há pessoas que dizem: “Ah, é­-me totalmente indiferente”. Custa­-me muito a acreditar nisso. Acredito que as pessoas, com o treino,com a prática, vão ficando com uma carapaça um bocadinho mais rija. Há também aquelas pessoas que fazem questão de não ler. Eu se calhar devia optar mais por esse lado, mas depois tenho aquele lado meio infantil de querer ver e responder e então acabo por ir lá e na maioria das vezes consigo divertir­me. Temos que separar aqui uma coisa, imagina: se for ofensa, insulto gratuito, são pessoas com as quais não vale a pena perdermos o nosso tempo a falar, porque na rua também não falaríamos com uma pessoa que nos ofendesse. Portanto, essas apago, bloqueio ­ há todas essas ferramentas para não ter sequer que interagir. Há muito essa coisa de uma pessoa que não gosta de ti nem do que tu fazes ir todos os dias à tua página e todos os dias comentar. Há nomes que eu vejo, vejo a notificação aparecer com certo nome, e penso “lá vem ele outra vez”. Já é conhecido. São pessoas que eu sinto que já conheço e a essas às vezes dá­-me algum gozo responder. Sinto que são mais as vezes em que tiro proveito, entre aspas, no sentido em que me divirto. Às vezes consigo divertir também outras pessoas que no fundo estão a assistir àquela conversa pública, ou seja, tento usar isso um bocadinho a meu favor: está aqui esta pessoa com imenso tempo livre a despejar frustrações, vamos tentar dar a volta a isto e torná­-lo engraçado. Vou tentando gerir. Acho que o Facebook e as redes sociais vieram trazer ao nosso conhecimento pessoas que de outra forma nós nunca teríamos o prazer, entre aspas, de conhecer.

«Vejo a notificação a aparecer com certo nome e penso “lá vem ele outra vez”.»

Já conseguiste mudar a opinião de alguém? Ou seja, tu vais lá responder e a pessoa: “Ahhh, pois, desculpe, não era bem assim…”
Sim, a minha intenção nunca é mudar, tipo converter ninguém. (Se) a pessoa não gosta, não gosta. Só acho estranho a pessoa ir lá. Mas às vezes acontece. Eu acho que as pessoas às vezes também estão só a precisar de atenção. Se calhar pessoas dessas fazem comentários em 20 ou 30 perfis, não há de ser certamente só no meu, e acho que às vezes estão ansiosas por uma resposta. Já aconteceu eu responder assim de forma meio sarcástica e a pessoa pedir desculpas e dizer: “Não, não, eu não queria ofender; eu até gosto, pensando bem, eu até gosto”. Nesses casos eu sinto que são pessoas que estão ali à procura de uma atenção qualquer que se calhar não têm noutras áreas da sua vida ou que têm trabalhos muito aborrecidos e também tento perceber isso.

“As pessoas às vezes só estão a precisar de atenção.”

Parte II - Foto 7

Também falas do fenómeno do futebol nas redes sociais e dizes que, na maioria das vezes, quem te ataca fá­-lo devido a piadas que fizeste sobre o futebol. O Daniel e tu disseram numa entrevista que conseguem fazer piadas sobre o vosso próprio clube de futebol… É sempre fácil separar o lado pessoal do profissional quando se faz humor?

Eu acho que tem que ser. Há pessoas que optam por fazer humor só para elas próprias, ou seja, têm a sua personagem, só escrevem para elas… Agora, a partir do momento em que eu escrevo para outras pessoas… Imagina: no “Donos Disto Tudo” temos sketches sobre todos os clubes. Eu sou perfeitamente capaz de escrever um sketch em que se está a gozar com uma situação qualquer do Porto da mesma maneira que o Daniel é certamente capaz de fazer isso com o Benfica. Às vezes eu acho que até somos mais cruéis quando é com o nosso próprio clube porque estamos a sentir as dores todas. Se achamos que há um incompetente qualquer ou um jogador que não presta, nós se calhar até somos mais mauzinhos do que se for uma pessoa de outro clube ou que não liga a futebol. Eu fiz isso muitas vezes ao longo da vida. Obviamente que depois quando estou a escrever para mim ou para o meu Facebook mais facilmente vou atacar os clubes ou as pessoas rivais, isso é uma tendência natural. Acho que é normal termos sentido de humor com tudo. As pessoas levam o futebol muito a sério. É sem dúvida o assunto acerca do qual eu recebo mais insultos. Ainda há pouco escrevi qualquer coisa no Facebook sobre o Porto e as pessoas insultam muito, partem muito facilmente para a agressividade. Felizmente que é só na internet; normalmente uma pessoa pode andar na rua descansada e ninguém nos faz mal.

“Acho que é normal termos sentido de humor com tudo. As pessoas levam o futebol muito a sério.”

As piadas não acabam por ter sempre também um lado crítico sobre as coisas, pelo menos a maioria delas?
Sim, eu acho que sim. Eu acho que as piadas têm sempre uma intenção, ou seja, não acredito que se pense primeiro na intenção e depois na piada, mas a piada, ao surgir, traduz mais ou menos o nosso pensamento, a nossa visão sobre um determinado assunto. Por isso eu não acredito muito naqueles comediantes que fazem piadas e que dizem que não têm nada a ver com aquilo que eles pensam. Acho que aí o humor torna-se um bocadinho inútil, acho que deve sempre transmitir uma mensagem. Não tem que ser uma mensagem política nem social; pode ser uma coisa mais ligeira, mas é a tua forma de ver o mundo da mesma forma que se falasses a sério seria também. Eu acho que o humor acaba por ser uma forma de, em primeiro lugar, as pessoas rirem ­ que esse tem de ser sempre o objetivo principal ­, mas também de pensarem sobre um assunto que se calhar nunca tinham visto sob aquele ângulo.

“Eu acho que as piadas têm sempre uma intenção.”

“Acho que (o humor) deve transmitir sempre uma mensagem.”

“Acho que o humor acaba por ser uma forma de as pessoas pensarem sobre um assunto que se calhar nunca tinham visto sob aquele ângulo.”

Parte III - Foto 8

Tens agora 30 anos. Como é que te imaginas com 50 anos de carreira?
50 anos de carreira? Isso é… Não sei, nem sei bem onde começar a contabilizar. Há aquelas pessoas que têm isso muito organizado ­ quando é que começou a sua carreira. Eu nunca fiz um currículo, lá está… Não faço ideia. Para já porque não sei onde hei de começar a contabilizar a carreira porque no fundo eu sinto que tenho várias carreiras, entre aspas, diferentes… Na rádio foi uma coisa, na televisão foi outra, como guionista mais atrás, portanto, não sei qual das carreiras celebrar primeiro. Acho que o melhor é não celebrar nenhuma; não tenho muito aquela obsessão… Eu percebo que em grandes artistas isso aconteça ­ um Marco Paulo, um Tony Carreira, que fazem 20, 30, 40 anos de carreira. Pronto, eu percebo, e enchem salas com isso. Não tenho muito essa coisa meio egocêntrica de festejar a carreira; prefiro ir festejando coisas que vou fazendo, projetos, lá está. Quando fizemos este “Altos e Baixos” (ao vivo) no fundo foi o festejar por termos estado estes anos todos a fazer o programa. Prefiro ir fazendo coisas assim. Da mesma maneira que quando se calhar fizemos o “Toca a Todos” na Antena 3 ­em que estivemos no Terreiro do Paço durante três dias ­ foi festejar um bocadinho a rádio naqueles dias. Eu prefiro ir pensando assim.

“Nunca fiz um currículo.”

“Não tenho essa coisa meio egocêntrica de festejar a carreira, prefiro ir festejando coisas que vou fazendo.”

Há alguma coisa de que gostasses muito de fazer nos próximos tempos?
Ir de férias (risos) era uma coisa que eu gostava muito de fazer. Tirando isso… Sabes que eu penso assim um bocadinho por objetivos. Eu gosto muito de trabalhar, mas na mesma medida em que adoro não trabalhar. Acho que vou mantendo a coisa equilibrada mais ou menos assim. Vou ficando à espera do que aparece. As coisas têm-­me dado gosto a fazer. Obviamente que tens sempre umas que te divertem mais do que outras, mas nunca me senti obrigada a fazer nada de que não gostasse. Já me aconteceu sair de projetos porque não estava a gostar. Acho que às vezes não há dinheiro nenhum que pague estares a fazer uma coisa muito chata. Obviamente que se a pessoa precisar muito é óbvio que tem que fazer qualquer trabalho, mas felizmente tenho tido a sorte de poder fazer só as coisas de que gosto. Portanto, acho que é continuar na mesma, é o meu plano.

“Eu gosto muito de trabalhar, mas na mesma medida em que adoro não trabalhar.”

“Tenho tido a sorte de poder fazer só as coisas de que gosto.”

Parte III - Foto 9

Entrevista a Joana Marques – Parte I