Paixão a preto e branco – Um clube de futebol
O jogo de domingo à tarde
O elétrico sobe e desce numa das mais bonitas ruas da cidade de Lisboa. A Rua da Bica. Os prédios antigos e os típicos cafés de bairro acumulam-se a cada subida, mas num, em particular, não cheira a Lisboa. A música que se ouve naquele café vem do outro lado do Atlântico. O sotaque das pessoas que lá se encontram é denunciador. Chegámos ao Brasil.
O café é pequeno. Contudo, acolhedor. A cozinha está uma correria, o cheiro a fritos aumenta, e a fome também. Apesar de tudo parecer desorganizado, o sotaque brasileiro é apaziguador e confere-nos a certeza de que tudo vai correr bem. Ouve-se música sertaneja. Bebe-se cerveja, muita cerveja.
O dono do café, ao olhar para o relógio, apressa-se a desmontar a televisão e a carregá-la para fora. O espaço é demasiado pequeno para tanta gente. O monitor fica sustentado por paus de vassoura, na rua, mas parece que isso não incomoda muita gente.
São 19h30 e o Sporting está a jogar contra o Braga. Uma portuguesa – que se confunde com uma estrangeira no próprio país – naquela zona da Rua da Bica pergunta, com naturalidade, se alguém pode mudar para um canal que transmita o jogo entre as duas equipas portuguesas. “Só quero conferir o resultado”. A resposta é perentória e tem sotaque brasileiro: “Não podemos, a final está começando”, explicou um dos proprietários.
Sporting? Braga? Os emblemas nacionais pouco parecem interessar. Não há sinais nem de verde nem de vermelho. O preto e o branco são as cores que arregalam os olhos numa rua pintada de tons vivos. O preto e o branco simbolizam a paixão daqueles brasileiros. Bandeiras, camisolas e cachecóis denunciam o nome da paixão: Clube Atlético Mineiro. Este é o nome do clube brasileiro capaz de mover as dezenas de adeptos que se amontoam na subida íngreme da Rua da Bica, onde nem o elétrico sempre a subir e a descer os parece incomodar.
São 20h e a bola vai começar a rolar.
“Victor, Victor, Victor!”
São quase 10h da manhã. O avião está quase a descolar do aeroporto de Lisboa rumo a Belo Horizonte, no Brasil.
É dia 22 de junho de 2013 e o Clube Atlético Mineiro, dentro de apenas 48 horas, pode escrever a melhor página da sua história. Dia 24 defronta o Olimpia, clube paraguaio, pela Copa Libertadores da América, a competição rainha entre os ‘times’ da América do Sul.
No avião, a caminho de terras de Vera Cruz, inquieta e ansiosa, vai Mariana, brasileira, mas portuguesa de coração. É adepta do clube alvinegro. Vive em Portugal há 10 anos. Consciente de que esta é uma oportunidade única para festejar perto da sua família aquele que pode ser o título mais importante do seu clube, comprou uma passagem de avião a apenas dois dias da final para viver de perto aquele que espera ser o melhor momento da sua vida.
Durante toda a campanha do Atlético na Libertadores, Mariana estava em aulas e a diferença horária entre Portugal e o Brasil obrigavam-na a assistir aos jogos de madrugada. “Em Portugal, os jogos costumavam passar entre as 3h e as 4h da manhã. Como tinha aulas no dia seguinte, dormia e metia o despertador para esse horário, ligando depois o computador para ver as partidas. “Fiz isso com praticamente todos os encontros da competição”, conta.
No entanto, essa condicionante começou a ser um problema sério quando o conjunto de Minas Gerais defrontou o Tijuana pelos quartos de final da prova. O jogo estava no prolongamento e o clube mexicano sofreu um penálti. Se o Tijuana convertesse a grande penalidade o Atlético seria eliminado da competição. Mas falhou. Victor, o guarda-redes atleticano, defendeu a bola que ditava o futuro da equipa mineira.
“Victor, Victor, Victor!”, era tudo o que se ouvia no sexto andar do prédio da Rua Cabo Verde, em Lisboa. “Eram para aí umas 4h da manhã e acordei praticamente o prédio inteiro. A minha vizinha de baixo, no dia seguinte, perguntou ao meu padrasto quem era o Victor”, relembra Mariana.
Na Rua Cabo Verde ninguém sabia quem era Victor, que, aliás, desde aquele dia, passou a ser chamado ‘São Victor’ pelos adeptos. As vizinhas daquele sítio de Lisboa não entenderam o porquê de tamanha algazarra. Não entenderam que Victor não era um namorado, era um herói de uma equipa de futebol. No fundo, as vizinhas não entendem estas coisas.
“Senti-me muito triste. Estava a viver um dos momentos mais importantes da história do meu clube e não tinha ninguém que entendesse, que sentisse o mesmo. Precisava de alguém para compartilhar emoções. Foi aí que decidi que tinha de ver a final no Brasil”, explica.
“Sofrimento do início ao fim”
O sol já estava tímido naquele final de tarde quando o avião pousou em Belo Horizonte. O aparelho, que partira de Lisboa no dia 22 de junho de 2013, chegara ao seu destino apenas no dia seguinte, a 24 horas da final.
“Não acredito que você saiu da Europa para ver o seu ‘time’ perder” – foi a primeira coisa que Mariana ouviu quando chegou à terra natal. “Vi um dos meus primos, que torce pelo rival do Atlético, o Cruzeiro, e ele nem me disse ‘oi’, nem me perguntou como estava. A primeira coisa que ele me disse foi isso”, confessa.
Minas Gerais tem cerca de 21 milhões de habitantes, e aproximadamente sete milhões são do Clube Atlético Mineiro. Atualmente, é o emblema com mais adeptos do estado de Minas, e Mariana apercebeu-se disso melhor do que ninguém. “Foi o dia mais louco de sempre. Belo Horizonte parou. Toda a gente falava sobre o jogo, todos acreditavam que o ‘Galo’ (mascote alvinegra) iria ganhar. Estávamos com muita fé”.
As finais no Brasil são disputadas em duas mãos e o Atlético tinha perdido 2-0 no primeiro jogo contra o Olimpia, o seu adversário. No entanto, a confiança de que o clube iria sagrar-se campeão era inabalável para aqueles adeptos. “A gente amanhã vai sofrer, mas tenho a certeza de que vai dar para o Galo”. Esta foi a frase repetida incansavelmente por Mariana durante a véspera do derradeiro desafio.
Chegara 24 de julho, a data mais relevante de 2013. “Eu e o meu primo, o Igor, que também é atleticano, comprámos um café da manhã à Galo. No Brasil tem muito disso. Vendem cerveja, leite, tudo com os símbolos do clube e nós comprámos tudo a condizer”.
A meio da tarde, Mariana e Igor esperavam o autocarro da equipa. “Senti tanta coisa naquele dia… Acreditava que iríamos ser campeões e já só imaginava a ‘torcida’ cantando o hino”, explica o primo de Mariana. O hino é tão importante para Igor que tem uma frase do cântico tatuada: “Uma vez até morrer”.
Os ponteiros do relógio foram andando até à hora da partida, que se aproximava cada vez mais. As ruas enchiam-se de gente e o barulho começava a tornar-se ensurdecedor.
“Fui ver o jogo na casa do meu tio. Ele é do Cruzeiro. Aliás, a maior parte das pessoas que estavam naquela casa eram cruzeirenses. Só eu, a minha tia e o meu primo éramos do Galo. Passaram o encontro inteiro a gozar connosco. Mas eu sabia que éramos capazes”, relembra.
“O impossível torna-se realidade” – A crónica de um jogo muito especial
O jogo começara. Estádio Governador Magalhães Pinto, Belo Horizonte, no Brasil. Era este o palco dos sonhos e estava na televisão de milhões de atleticanos que assistiam ao jogo, inquietos. Mariana não era exceção – aliás, era a regra.
“O Galo precisava de dois golos para levar o desafio para prolongamento, pois perdera, na primeira mão, no Paraguai [2-0]. Começou muito bem. Massacrou o Olimpia na primeira metade do jogo, mas os golos não apareciam. O intervalo chegou e fui à casa de banho”, conta.
Desengane-se quem acha que uma casa de banho não é o sítio ideal para falar com Deus. Sim, com Deus. “Sabe aquela história de eu lhe pedir para o Brasil ser campeão do Mundo em 2014? Pode esquecer. Por favor, faz o Galo ganhar essa Libertadores, faz acontecer pelo menos o empate e que, no prolongamento, vença o melhor”, suplicou Mariana com todas as forças.
Deus sabia quem era Victor – ao contrário das vizinhas –, quem era o Galo, quem eram aqueles adeptos que desejavam aquela conquista mais do que ninguém. Aos 46 minutos da segunda parte, Jô, avançado alvinegro, fez o primeiro golo da partida. O Galo precisava de mais um remate certeiro para levar o jogo para prolongamento.
No entanto, o sonho podia ter terminado mais cedo para a formação da casa se não fosse Deus a fazer das suas… de novo. Completamente isolado, à frente da baliza, com o ‘São Victor’ já batido, o jogador do Olimpia, Juan Carlos Ferreyra, estava a um passo de acabar com a aspiração atleticana. O impensável aconteceu. Juan Carlos escorregou na relva e caiu, a segundos de rematar. Deus, certamente, pregou-lhe uma rasteira.
O relógio não parava e os 90 minutos regulamentares chegavam ao fim, mas nunca a esperança dos adeptos. Deus sabia o que estava a fazer. Aos 92 minutos, no prolongamento da partida, Leonardo Silva marcou o segundo golo para o Atlético Mineiro, de cabeça. “A bola fez uma curva e aqueles dois segundos antes de entrar na baliza levaram uma eternidade. Depois… um misto de alegria e choro tomou conta de todo o meu ser. Ali, havia a certeza de que não perderíamos mais”, relembra Marvin Xavier, amigo de Mariana.
Seguiram-se os penáltis. As redes da baliza do Olimpia eram defendidas por Martín Silva, um ‘mero’ guardião argentino. Já a baliza atleticana… era abençoada por ‘São Victor’. Assim sendo, o desfecho era previsível. Victor defendeu uma grande penalidade e o poste consumou o milagre. Estava escrito. O Clube Atlético Mineiro era o Campeão da Taça Libertadores da América de 2013.
No sexto andar da Rua Cabo Verde, em Portugal, eram quase 4h da manhã e a noite foi, aparentemente, tranquila, pois desta vez gritava-se por ‘São Victor’ a mais de 7000 quilómetros de distância. Em Belo Horizonte as vizinhas eram outras. Sabiam quem era Victor. Toda a cidade sabia quem era Victor.
De volta à Rua da Bica
O elétrico há muito que já se cansou de subir e de descer. A subida íngreme da Rua da Bica é agora ocupada pelos ‘torcedores’ do Galo. “O tropeirão está pronto”, ouve-se calorosamente dentro do café. A fila – com pratos de alumínio, prontos a provarem a típica iguaria de Minas – aumenta apressadamente. É um jantar de domingo em família.
O mais recente membro do fiel clã, que se reúne em dias de jogo, é Mariana. Depois da conquista da Taça Libertadores, em 2013, voltou a viver no Brasil. No entanto, movida pela saudade das terras lusitanas, mudou-se, definitivamente, para Portugal, este ano. Habituada a acompanhar o clube do coração no outro lado do Atlântico, quando voltou, sentiu a necessidade de partilhar essa paixão com outros adeptos. “Quando voltei não queria continuar a ver os jogos sozinha. Pesquisei na internet e deparei-me com o PortuGalo. O nome é engraçado: é a junção de Portugal com Galo. Enviei uma mensagem através do Facebook ao administrador da página – o Thiago – e, desde então, vejo as partidas do Atlético com o grupo”, explica Mariana.
“Golo, é golo do Galo!”, grita-se em frente ao número 62 naquela rua de Lisboa. A equipa de Minas acaba de inaugurar o marcador na final do campeonato mineiro contra o Cruzeiro – o eterno rival do clube preto e branco. Miúdos e graúdos, como uma família deve ser, festejam, efusivamente, o primeiro golo do encontro. Amontoados e apertados, os membros do PortuGalo carregam o ‘tropeirão’ numa mão e cerveja na outra. O relato do encontro é interrompido pelos cânticos dos apaixonados: “Nós somos do Clube Atlético Mineiro/ Jogamos com muita raça e amor/ Vibramos com alegria nas vitórias/ Clube Atlético Mineiro, Galo forte e vingador/ Vencer, vencer, vencer/ Esse é o nosso ideal”. O hino repete-se. O prato de alumínio enche-se de novo. Bebe-se mais um copo de cerveja. É assim que se faz a festa alvinegra.
O golo do Cruzeiro interrompe, por momentos, a harmonia familiar. “Vamos, Galo”, ouve-se, imediatamente após o empate. A equipa mineira parece ouvir os apelos do Consolado em Lisboa. Aos 70 minutos, Elias sentenceia o duelo. Faltam apenas 20 minutos para o conjunto atleticano colecionar mais um título mineiro – o 44.º da sua história.
Os encontros de domingo são uma parte essencial da vida destes emigrantes brasileiros. Longe dos seus parentes, encaram estas reuniões como um regresso às suas origens. “O PortuGalo trouxe-me aquilo que eu vivia no Brasil. Aqui, tenho a oportunidade de poder vibrar com os ‘meus’. Pertencer a este grupo é poder sentir a força que o Galo tem em tornar-nos uma família”, conta Leonardo Pereira, adepto do ‘time’ de Minas.
Ser do Clube Atlético Mineiro não é, apenas, envergar um símbolo de um clube ao peito. Não é, simplesmente, assistir a uma partida de futebol. Ser do Galo – nos gestos, olhares e palavras destes aficionados – é uma religião. “O Atlético é um dos ‘nossos’. As conquistas do clube são encaradas como se fôssemos nós próprios a caminhar para o sucesso. As vitórias são o sucesso do ‘torcedor’ atleticano. É um vínculo fora do normal”, confessa, emocionada, Mariana.
O árbitro da partida apita para o final do encontro. “Campeões!”, vocifera-se em frente do café. Vai ser necessário arranjar espaço para o novo troféu no museu em Belo Horizonte.
A noite já vai longa e as despedidas aproximam-se. O jantar terminou. É hora de desmontar o televisor que estava na rua. Uma nova semana de trabalho avizinha-se. Mas, para a semana, é dia de voltar a casa. Para a semana é dia de voltar a estar em família.