“Ser jornalista é olhar para um detalhe e perceber a grandiosidade do detalhe.”
Entrevista a José Gabriel Quaresma .
Podes ouvir a entrevista completa aqui:
Já lhe caiu um dente em direto; disseram-lhe que nunca ia ser jornalista; diz ter alma ribatejana. Passou pela Rádio Ribatejo, pela Rádio Lezíria e pelo jornal Vida Ribatejana. Estagiou na TSF em 1994. Entrou para a TVI há 21 anos como jornalista desportivo e conta já com 23 anos de carreira. Atualmente é pivô e editor na TVI24.
Arrepende-se de ter enveredado pelo jornalismo ou não?
Não, de todo. Não, não, não me arrependo. Era o que eu queria fazer. Consegui fazer aquilo que queria e sinto-me um privilegiado.
O José perdeu um dente em pleno direto quando estava a cobrir a eleição de Vale e Azevedo como Presidente do Benfica.
O que é que lhe passou pela cabeça naquele momento?
Recordo-me da situação como se fosse hoje. O então Presidente do Benfica tinha entrado no pavilhão; era de madrugada, a situação ficou incontrolável. Nós estávamos em direto, era um dos milésimos diretos que estávamos a fazer, era o último. Eu perdi o contacto visual com o meu repórter de imagem e continuei a falar. Quando terminou o discurso aquilo foi tudo abaixo e o direto continuou. Eu percebo que o meu repórter de imagem está no meio da multidão a tentar virar-se para mim, eu estou a falar quando cai o dente. Naquela altura o que me passou pela cabeça foi – consegui ter alguma frieza técnica, apesar de ser jovem na profissão na altura, e pensar – “bom, se ele estiver num plano fechado em mim por causa da multidão um dente é como se não tivesse dentes de todo; então o melhor é assumir”. Na verdade foi um impulso e assumi. Assumi, a situação teve piada para toda a gente. Até o desfecho depois da situação foi fantástico. Na altura não teve piada nenhuma para mim como deve calcular. Curiosamente estou cansado de pesquisar e ainda não encontrei um caso semelhante de um jornalista de televisão em todo o mundo a quem tenha caído o dente da frente em direto.
“Ainda não encontrei um caso semelhante de um jornalista de televisão em todo o mundo a quem tenha caído o dente da frente em direto.”
Pode dizer-se que o seu percurso foi um conjunto de adversidades felizes?
Fantástico! Fantástico. É a primeira vez que alguém me diz isso e que retrata efetivamente o meu percurso e até um pouco a minha vida se calhar. É tal e qual isso. Tal e qual, foi isso.
Diz que deve a sua carreira ao desporto.
Porque é que foi para a área de desporto e não para outra qualquer?
Vou buscar a frase que utilizou: “Um conjunto de adversidades felizes”.
Eu fui para a TVI e a vaga que havia para eu começar era no desporto. Era a vaga de alguém que estava a sair e que ainda hoje trabalha comigo, mas que estava a sair do desporto. Na altura, o que me disseram foi: “Se provares que mereces o lugar para ti, ficas com ele”. Portanto, foi uma casualidade.
Até uma determinada altura sempre quis fazer desporto depois de já estar a fazer, claro. Mas chegou uma altura da minha vida e da minha carreira em que eu pensei: “bom, apetece-me tentar experimentar outras coisas”; e tomei a decisão de deixar para trás 15 anos, que é quase uma carreira já.
“A vaga que havia para eu começar era no desporto.”
“Até uma determinada altura sempre quis fazer desporto.”
O José descreve assim a vila, agora cidade, de Vila Franca de Xira na sua infância:
“A vila tinha uma dinâmica muito especial. Famílias burguesas que se misturavam com famílias de trabalhadores. A lota, as varinas, as brincadeiras nas ruas… Íamos aos outros bairros atacar os nossos inimigos com flechas feitas com as varetas de chapéus de chuva velhos. Fazíamos jogos de hóquei – sem patins. Os jogos de futebol no Campo da Mina ou na Rua de Trás com bolas feitas de espuma e couro que o senhor Luís nos dava. As corridas com carrinhos de rolamentos, os peditórios para as festas dos santos populares, as esperas de touros, os mergulhos no Tejo, e tanta, tanta coisa que não cabe neste texto, mas que faz parte do meu ADN.”.
Escolheu a música “The River” de Bruce Springsteen para passar aqui no programa. (Esta entrevista tem como base o programa de rádio “O da Joana” da ESCS FM. É pedido aos convidados que escolham cinco músicas.)
Esta música está relacionada com os mergulhos no Tejo que dava na sua infância e adolescência?
(Risos / Suspiro) Ah… Agora fiz uma pequena viagem no tempo. Obrigado por isso. Essa música, essa música não tem explicação e eu explico. Isso tudo que acabou de dizer é verdade. Quando éramos miúdos tínhamos um amigo, que morreu há muitos anos com 20 e poucos anos, que era o Artur. E eu, o Artur e o Ricardo – o Brasileiro – éramos fãs e somos ainda do Bruce Springsteen . Eu gostava de todas as músicas e quando comecei a namorar com a minha atual mulher a primeira música que dancei com ela foi “The River” de Bruce Springsteen. Portanto, essa música tem uma carga emotiva e emocional sobre mim brutal, porque sempre que a ouço comovo-me e comovo-me porque tudo o que tu disseste é verdade.
«A primeira música que dancei (com a minha mulher) foi “The River” de Bruce Springsteen.»
A exposição pública traz mais desvantagens do que vantagens?
Eu nunca pus as coisas assim. A única desvantagem que me trouxe é que eu não gosto. Eu não gosto que olhem para mim num centro comercial, eu não gosto que olhem para mim num restaurante…
“Eu não gosto que olhem para mim num centro comercial, eu não gosto que olhem para mim num restaurante…”
Mas porquê? Porque se sente observado? Porque sente que o seu espaço está a ser invadido?
Clarooo! Clarooo! Clarooo! Ainda ontem tive esta conversa. Se eu trabalhasse numa pastelaria o produto final do meu trabalho era vender o bolo ou o que fosse. As pessoas conhecem-me da televisão, mas para mim não passa da minha profissão. E eu tenho a desvantagem de nunca ter lidado bem com esse facto de me sentir observado: “Que raio, porquê? Porquê eu?”.
Ahhh… Vantagens? Se calhar ser convidado para dar esta entrevista eventualmente. (Risos)
“As pessoas conhecem-me da televisão, mas para mim não passa da minha profissão.”
Um jornalista tem de ser um bom observador?
Tem que ser, sobretudo, um observador dos detalhes, dos pormenores. Porque não há objetividade. A partir do momento em que eu olho deixo de ser objetivo, estou a ter uma tomada de olhar. O que é que poderá fazer a diferença? Tenho um colega… Aqui há tempos conversávamos e estávamos junto a um extintor. Chegámos a uma conclusão: ser jornalista é fazer “n” histórias sobre aquele extintor porque ele tem ali uma série de vida. É de uma cor, é de um material, tem lá letras, tem moradas… Ser jornalista é isso, é olhar para um detalhe e perceber a grandiosidade do detalhe. É aí que está de facto a essência das coisas, é nos pormenores.
“(Um jornalista) tem que ser, sobretudo, um observador dos detalhes, dos pormenores.”
“Não há objetividade.”
«Ser jornalista é fazer “n” histórias sobre aquele extintor.» “Ser jornalista é olhar para um detalhe e perceber a grandiosidade do detalhe.”
Quando se partilha a vida com uma pessoa com a mesma profissão que a nossa e que trabalha no mesmo sítio onde nós trabalhamos existe uma maior compreensão mútua ou, pelo contrário, torna-se às vezes mais difícil gerir a relação?
As duas coisas. Porque na verdade quem não trabalha na televisão e no jornalismo – no caso de um casal – não tem a mínima noção do que é o outro lado. A pressão diária, a exigência diária e o trabalharmos mais horas, mas sem que nos peçam, sem que haja burocracias, coisas institucionais; é para fazer, faz-se. É muito difícil perceber o outro lado. Quando estamos os dois essa parte não se coloca, mas depois há a relação pessoal. Dentro do local de trabalho ela é minimizada, mas as conversas andam sempre à roda do mesmo. Conversas de trabalho, leia-se, ou seja, não conseguimos diversificar. Tipo: “Então, vendeste muitos bolos?” / “Sim, vendi.” / “Então e tu? Arranjaste muitos carros?” / “Sim, arranjei.”. Não. Ali é: “Pá, a peça que não entrou a tempo e o outro que esteve doente.”. Enfim. Não aconselho (Risos). Mas lá está, também aconteceu. Eu já estava com esta pessoa antes de ser jornalista.
“Quem não trabalha na televisão e no jornalismo – no caso de um casal – não tem a mínima noção do que é o outro lado.”
“A pressão diária, a exigência diária e o trabalharmos mais horas, mas sem que nos peçam; é para fazer, faz-se.”
“O ego é um animal muito chato de domar.”
“Eu tenho esperança na nova geração de jornalistas.”
“Sejam é irreverentes e vão à luta e nunca desistam.”
“Não deixem que vos ponham o pé em cima, sobretudo isso, isso eu nunca deixei.”
Disse sobre a sua infância e adolescência: “Naquela altura a televisão era a única alternativa à rádio – que me fascinava muito mais enquanto plataforma de comunicação –; sentia que havia na rádio mais magia.”
Hoje continua a ter a mesma opinião?
Não igualmente, mas porque eu acho que a televisão também tem magia.
O que eu acho que se tem feito é matar essa magia. Eu lembro-me da primeira vez que entrei num estúdio de televisão a sério na RTP, no âmbito do meu curso no CENJOR. Não queria acreditar quando entrei no estúdio e vi que o José Rodrigues dos Santos se sentava naquela cadeira, naquela mesa… Quando as luzes se acendem é mágico e o que nós estamos a fazer, ao deixar que o cidadão normal penetre cada vez mais na televisão, vai matar essa magia. A rádio tem sempre a magia. As pessoas se calhar não têm a noção de que em rádio nós falamos e esbracejamos e fazemos caretas. Esta magia de passar por palavras – porque é só e é efémero – é algo fantástico e, curiosamente, é uma grande escola para a televisão.
“A televisão também tem magia.”
“Deixar que o cidadão normal penetre cada vez mais na televisão, vai matar essa magia.” “[Sobre a rádio]: esta magia de passar por palavras é algo fantástico. É uma grande escola para a televisão.”
O que é que a rádio lhe trouxe enquanto jornalista?
Bom, foi lá que comecei e na altura, sem qualquer tipo de formação, achava-me um brilhante jornalista. (Risos)
E era?
Acha? Não! (Risos) Não era sequer estagiário de jornalismo porque eu fazia as coisas sem saber o que é que estava a fazer. Lia as breves dos jornais – era o meu noticiário – recortava e lia, pronto. Depois comecei a trabalhar numa outra rádio. Entretanto veio a TSF e aí sim. Eu acho que a minha génese de jornalista foi moldada na TSF, o barro. O barro que vai dar a figura foi moldado ali. Depois fui para a televisão e, de facto, aproveitei sempre tudo o que tinha aprendido na rádio nos primeiros tempos de televisão. Há muito desse tempo que ainda hoje aplico: sobretudo na escrita, numa escrita mais curta, com mais ritmo, e o gesto de estar a gravar uma peça na televisão e estar a esbracejar também como na rádio.
“Eu acho que a minha génese de jornalista foi moldada na TSF.”
“Aproveitei sempre tudo o que tinha aprendido na rádio nos primeiros tempos de televisão.”
Tem saudades de fazer rádio ou não?
Imensas. Tenho muitas, muitas.
“Tenho muitas (saudades de fazer rádio).”
E porquê?
Exatamente por tudo isto de que falámos. Poder estar aí sentado, passar uma música que eu acho que as pessoas vão gostar, falar sobre ela… O que eu gostava mesmo de ter era exatamente um programa como este, a sério. Um programa em que eu pudesse entrevistar pessoas neste âmbito. Eu gosto de conversar e gosto de conversar com pessoas, gosto de saber histórias. Histórias que têm pessoas dentro é aquilo que eu acho que um jornalista pode querer e adorava um dia, obviamente, regressar à rádio, claro.
“Eu gosto de conversar e gosto de conversar com pessoas, gosto de saber histórias.”
“Adorava um dia, obviamente, regressar à rádio, claro.”
Quem é que eu devia convidar para uma entrevista para falar sobre a Rádio?
Quem? Ah – sem dúvida absolutamente nenhuma – o meu mestre, o meu guru, o enorme Fernando Alves!