Grande Reportagem

O Sorriso de Amanhã

É costume ouvir-se: “As crianças são o futuro”. Mas como assegurar esse futuro? Só em 2016, as Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) acompanharam mais de 72 mil crianças e jovens em situações de risco. Todos os anos , cerca de 400 crianças e jovens são diagnosticadas com cancro em Portugal. São Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS), como a ACREDITAR, a Fundação do Gil e a Aldeia de Crianças SOS , que lutam todos os dias para que o futuro sejam mesmo as crianças, enfrentando diversas dificuldades.

 

Maria Odeta Moreira todos os dias prepara os meninos para a escola, trata das suas refeições, limpa a casa com a ajuda de uma auxiliar, vai à escola quando é necessário e acompanha as crianças nas consultas.

Podia-se estar aqui a falar de uma mãe normal. No entanto, estamos perante uma das mães sociais que integram a Aldeia de Crianças SOS Portugal e dedicam as suas vidas a cuidar de crianças e jovens.

 

Maria Odeta Moreira, mãe SOS

 

A Aldeia de Crianças SOS é uma ONG internacional de apoio à infância. Em Portugal, surge no ano de 1964 pelas mãos da Dra. Maria do Céu Correia e da Dra. Palmira Matias, possuindo atualmente diversos programas, como a Família SOS e os Programas de Fortalecimento Familiar.

O projeto “Família SOS”, sob o acompanhamento de uma Mãe SOS, procede ao acolhimento  das crianças retiradas das suas famílias, não separando irmãos e tentando dar às crianças um ambiente estável e saudável no qual podem dar seguimento a um plano de vida.

 

Já o Programa de Fortalecimento Familiar tem como intuito apoiar as famílias sinalizadas pelas CPCJ de Guarda, Rio Maior e Oeiras, de forma a prevenir a retirada das crianças, a fomentar o regresso destas à sua família ou a manter os vínculos familiares, mesmo depois de as crianças serem afastadas da família.  

Para se tornarem mães SOS, informa-nos Manuel Matias, diretor de Marketing e Fundraising, “é feito um processo de candidatura parecido às candidaturas normais”. As candidatas fazem uma entrevista de emprego e, caso fiquem, passam por um período no qual são tias, auxiliando a mãe.

Este período de treino serve para se aperceberem da importância do papel maternal, podendo posteriormente decidir, com mais consciência, se é aquela a profissão que querem.

Para Manuel Matias , a seleção das mães é uma das dificuldades que a instituição enfrenta: “é uma profissão que tem um lado de doação da sua vida, ou seja, enquanto a maior parte de nós tem o seu horário de trabalho mas depois vai para casa, no caso das mães SOS é diferente. Elas aceitaram doar a sua vida para educar estas crianças”, explica.

Além disso, afirma que as mães não são valorizadas pela sociedade, nem pela segurança social. “A segurança social por um lado reconhece a dedicação das mães, mas por outro lado, às vezes, tende a privilegiar o lado técnico em relação ao lado afetivo e realmente as duas coisas têm que estar a par”.

 

Maria Odeta sente-se realizada com a sua profissão. No entanto, levanta algumas das mesmas questões apontadas por Manuel: “Há dias em que podemos ir um bocadinho mais abaixo. Outros dias onde as coisas melhoram, mas isso acontece com todos os pais nos dias de hoje”. Confessa ainda que por vezes sente que exagera um pouco: “esqueço-me que tenho família lá fora. Estou de folga, mas, ou estou em contacto, ou permito que me contactem”.

Para além deste problema, Manuel Matias  refere que falta uma valorização estatal dos Programas de Fortalecimento Familiar, apesar de já serem reconhecidos por este.

A maior parte dos programas de fortalecimento de família no país não são apoiados financeiramente pelo Estado. “É um pouco um contrassenso, porque custa muito menos e faz mais sentido apoiar preventivamente as crianças que ainda estão juntamente com as suas próprias famílias do que apoiar numa fase posterior”, explica Manuel Matias.

Refere ainda que isto “tem a ver com a legislação, mas também com restrições orçamentais.” Manuel não deixa de frisar: “a nível do esforço legal não é preciso muito mais. O que é preciso é depois ter capacidade para acompanhar e ajudar.“

 

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Já André Morna, coordenador da Casa do Gil (projeto integrante da Fundação do Gil), vê as questões legais de uma forma um pouco diferente: “Têm vindo a surgir algumas mudanças, mas ainda estamos a anos luz relativamente a outros países, por exemplo, a nível das famílias de acolhimento temporário.” Refere que já há alterações, mas que a lei não protege os candidatos.

A Fundação do Gil foi criada em 1999. Até há alguns anos concentrava o seu trabalho no apoio pós-hospitalar de crianças. Mas, segundo André Morna, “a falta de apoio por parte do Ministério da Saúde, que não financiava nem apoios ao trabalho a desenvolver, nem recursos humanos, fez com que a Fundação tivesse que se reinventar e focar-se no que realmente sempre fez: ajudar crianças e famílias em risco.”

Atualmente, apesar de ainda dar alguma continuidade ao apoio pós-hospitalar de forma não invasiva, a Casa do Gil é “um Centro de Acolhimento Temporário que visa acolher crianças entre os 0 e os 12 anos, em risco social e/ou clínico (não evasivo), com vista à sua reinserção na sociedade, seja através da reintegração familiar, adoção ou institucionalização prolongada” .

A Fundação do Gil também possui o projeto UMAD , no qual apoia as crianças com doenças crónicas, permitindo o seu regresso a casa, ao assegurar o acompanhamento clínico e social ao domicílio.

Para a Fundação, a época natalícia é a altura em que as ajudas aumentam: “durante o Natal, as pessoas lembram-se mais de que existimos. Imbuídos do espírito somos mais contactados para ajudas que não contamos. Pena que não seja durante todo o ano.”, afirma André Morna.

 

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Na aldeia de Crianças SOS também acontece o mesmo: durante o ano, os níveis de angariação de fundo são relativamente baixos e é na altura do Natal que as pessoas se lembram da questão da solidariedade. Por definição, lembram-se sobretudo das crianças”, explica Manuel Matias.

Acrescenta também que, durante o Natal, tenta-se direcionar os donativos para o que é realmente necessário nas casas, como bens alimentares, em vez da doação de prendas e de brinquedos velhos. “O que procuramos fazer é disciplinar e dizer: nós precisamos de ajuda, mas deixem que nós vos digamos qual é a ajuda que é precisa.”, afirma.

Esta política de donativos também é empregue pela ACREDITAR: “quando nos procuram no sentido de ajudar, orientamos e dizemos, por exemplo, ‘este mês precisamos é disto’ “, explica Alexandra Correia, coordenadora do Núcleo Sul da ACREDITAR.

A ACREDITAR tem como missão apoiar as famílias das crianças e dos jovens diagnosticados com cancro ao longo das fases da doença, assistindo emocionalmente – ao nível das informações sobre a doença e dos tratamentos – e financeiramente, ao nível da alimentação, entre outros.

Tal como a Aldeia de Crianças SOS e a Fundação do Gil, a ACREDITAR também nota um aumento dos donativos durante a época natalícia, embora frise que durante o ano se sinta que as pessoas estão recetivas, bastando às vezes só pedir.

 

O financiamento é uma das áreas na qual as diversas instituições enfrentam dificuldades.

André Morna, da Casa do Gil, afirma que essa dificuldade impede que a organização atue em mais frentes.

Já Manuel Matias, da Aldeia de Crianças SOS, diz que são apoiados em 30% pelo estado e que tem de “pedalar” para “ obter os outros 60%” .

A questão da sustentabilidade é também referida por Alexandra Correia, da ACREDITAR: “o que nós pretendemos é muito mais do que dar uma resposta imediata”, explica. Dá como exemplo o projeto iniciado em 2012, “O Cabaz”, no qual são distribuídos cabazes de alimentos às famílias de crianças com doença oncológica. “Para fazer isto nós tivemos de garantir que tínhamos a capacidade de dar resposta, não só às famílias que surgiram naquele ano, como também às que surgem a cada ano”, explica.

 

No entanto, não são só os problemas financeiros que afetam estas IPSS.

No caso específico da área da oncologia pediátrica, em que a ACREDITAR atua, as respostas sociais previstas são insuficientes, apesar da evolução que tem havido. “Quando este diagnóstico surge, há uma imediata diminuição do rendimento da família e um aumento imediato das despesas, porque alguém tem de ficar com a criança e acompanhá-la”, explica.

Acrescenta ainda que o tempo de entrega de um subsídio após ficar de baixa para acompanhar a criança é demasiado longo, uma vez que as despesas continuam. Por isso, argumenta que “as políticas que existem no momento, não estão totalmente ajustadas a estas questões”.

Apesar deste problema, não deixa de salientar: “nós temos felizmente um país em que todos temos acesso a cuidados de saúde e isso é fundamental”. Apesar de na área da oncologia pediátrica, segundo Alexandra Correia, ser assim, na área da doença mental o mesmo não acontece.

 

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Maria Odeta, Mãe SOS, relata a experiência de diversas crianças da aldeia SOS que apresentam graves problemas psicológicos, tendo de ser a Aldeia a tratar de tudo, uma vez que as consultas de psiquiatria no Serviço Nacional de Saúde demoram imenso tempo até serem realizadas.

Outra dificuldade que Maria Odeta sente é a nível escolar, sendo o processo de transferência “uma verdadeira loucura”, segundo a mesma.

Deu como exemplo dois irmãos (uma menina e um menino) que passou a acolher recentemente: “o rapaz teve 2 semanas e meia sem aulas, porque o processo não andava. No caso da menina foi fácil, porque nós conseguimos colocá-la no colégio privado que colabora connosco, que fez o favor de atender aos nossos pedidos. A situação só foi resolvida depois de muita pressão da assistente social”, afirma.

 

Aldeia de Crianças SOS

 

A educação é uma ferramenta imprescindível para a formação das crianças.

No entanto, até as crianças apoiadas pela ACREDITAR são afetadas por problemas a este nível. “Elas precisam de condições que lhes permita continuar a estudar e as escolas precisam de estar capacitadas do ponto de vista de recursos técnicos e humanos. Felizmente, agora tivemos uma alteração. Houve uma portaria que saiu recentemente e que prevê algumas alterações às questões da escolaridade.“, diz Alexandra.

As questões legislativas sempre foram uma luta constante por parte da ACREDITAR, que, desde 2009, ano em que se criou o regime especial de proteção às crianças, luta por este mesmo, que nunca chegou a ser regulamentado. Em Setembro de 2017 até apresentou na Assembleia um Levantamento de Problemas em Oncologia Pediátrica. Deste relatório, surgiram projetos de resolução que foram aprovados na Assembleia da República.

 

As IPSS enfrentam também a falta de conhecimento e o preconceito.

André Morna, da Fundação do Gil, gostaria de que a população em geral conhecesse melhor o trabalho desenvolvido pela fundação. Além disso, relativamente ao preconceito acha que por vezes cai-se na ideia de que as crianças que vivem na casa são ‘coitadinhas’.

Na visão de Manuel Matias, “a sociedade não tem muitos preconceitos”. O que nota  “ é que muitas vezes as pessoas não conhecem o problema na sua dimensão e que se soubessem, se calhar estavam mais sensíveis a ajudar.”

Alexandra Correia partilha um pouco dessa ideia quanto ao conhecimento: “o conhecimento é extremamente importante. Uma das coisas com que as famílias têm que lidar é com a ignorância no sentido de desconhecimento desta realidade. Hoje em dia, ainda há e não estou a falar do interior de Portugal, mas mesmo aqui em Lisboa. Ainda há quem ache que o cancro é contagioso. Quando nós partilhamos o nosso conhecimento, divulgamos informação e enriquecemos aquilo que é o conhecimento das pessoas que nos ouvem. Nós diminuímos o preconceito, o que para nós é importante.”

Para Maria Odeta, mãe SOS, já existiu mais preconceito no passado: “eu acho que a sociedade já tem outra visão. Embora ainda haja pessoas que achem que são filhos de drogados, são filhos de ciganos, são filhos de gente africana. Eu sei que ainda existe, mas… Eles próprios também não notam muito isso.”, afirma.

No entanto, não deixa de referir que o que nota relaciona-se mais com a própria escola: “está mais em cima dos nossos meninos do que qualquer outro, portanto a nós não nos é permitido falhar em nada.”, explica.

 

Dia 23 de novembro de 2017: No programa “Linha da Frente”, da RTP, o juiz Armando Leandro é acusado de conflito de interesses uma vez que dirigia ao mesmo tempo a CPCJ e a Crescer Ser e, implicitamente, de fazer parte de um grupo de juízes que retira crianças de famílias para poder ganhar dinheiro com os apoios do Estado.

 

Dia 9 de dezembro de 2017: A TVI transmite a reportagem de Ana Leal, onde se acusa a atual ex-diretora, Paula Brito da Costa, de desviar fundos da “Associação Raríssimas”.

 

Estes são alguns dos casos noticiados e que abalam a área do apoio à infância em Portugal.

A pergunta que se instalou imediatamente foi: Será que desvios de fundos descredibilizam o trabalho das IPSS?

Nota: Nas entrevistas, o caso utilizado como exemplo foi o da “ Associação Raríssimas”.

Para André Morna, coordenador da Casa do Gil, a resposta a essa pergunta é negativa. “Acho que nos dias seguintes, as pessoas, de uma maneira geral, tendiam a colocar-nos no mesmo pé de igualdade. É fácil generalizar, mas com o tempo e com verdade julgo que não nos afeta.”, explica.

Já Manuel Matias, diretor de marketing e de fundraising da Aldeia de Crianças SOS, acha o contrário, explicando a importância da credibilidade. “Não trabalhamos com fundos nossos. Nós trabalhamos com fundos do Estado, com o fundo das empresas e estas empresas, os particulares e os que nos ajudam confiam em nós para usar este dinheiro, para o fim que eles ajudaram. No dia em que a credibilidade for quebrada, os meus doadores afastam-se. Tão simples quanto isso”, diz.

Alexandra Correia, coordenadora do Núcleo Sul da ACREDITAR, não consegue chegar a um consenso pessoal acerca da questão. Na sua opinião, “a sustentabilidade das organizações e a credibilidade depende muito da qualidade do trabalho que é desenvolvido no dia-a-dia”. Não deixa de salientar que o trabalho deve sempre ser feito “com a mesma excelência, independentemente das circunstâncias que vão acontecendo na nossa sociedade”, explica.

André Morna e Manuel Matias não comentaram o caso das Raríssimas, remetendo sempre para o facto de estar a decorrer uma investigação e que só essa inspeção é que vai revelar o que é de facto a verdade. O mesmo acontece com Maria Odeta Moreira, cujo depoimento vai ser apresentado de seguida. Já Alexandra Correia não comentou o caso, nem remeteu para a investigação.

Maria Odeta Moreira aproveita a pergunta para clarificar: “acho que em determinada altura a comunicação social confundiu algumas coisas e uma delas foi que não podermos misturar o que uma pessoa fez de errado numa determinada situação e o que a instituição faz, porque no caso da Raríssimas não nos podemos esquecer de um trabalho que está feito. Aquela senhora teve um momento infeliz. Imaginemos que é verdade que a senhora cometeu falhas graves e usou o dinheiro indevidamente. Isso tem que ser bem avaliado, investigado e a senhora tem que ser condenada, mas não se pode pôr a instituição em causa. O que nós estamos a verificar é que a instituição estava a começar a ficar com necessidades”, afirma.

 

 

“Aqui a comunicação social tem uma responsabilidade muito grande. Quando faz uma reportagem, tem que ir ao fundo da questão e tem que deixar sempre isto em aberto até para a opinião pública, porque o que se passa é que os donativos são necessários todos os dias para as instituições sobreviverem”, apela.

Além disso, fez questão de condenar a reportagem do “Linha da Frente” sobre o Dr. Armando Leandro, que já conhece há quase 30 anos. “Se há pessoas nesta vida por quem eu ponho as mãos no lume, ele é uma delas. Ele é o pai da proteção de menores em Portugal”, afirma.

“O que estas reportagens estão a fazer passar é que são as instituições que vivem à custa da Segurança Social. Isto não é verdade. Nós fazemos um trabalho ao Estado, porque lhe ficaria garantidamente muito mais caro se tivesse que o fazer diretamente e o dinheiro que o Estado nos dá não chega para tudo aquilo de que os meninos precisam”, diz.

De forma a sustentar o seu argumento, conta a história de que quando o Dr. Ferro Rodrigues era ministro do Trabalho e da Segurança Social e o Dr. Armando Leandro tinha um amigo que era secretário de Estado desse ministro, ele nao deu uso do seu contacto para colmatar a falta de dinheiro da “Crescer Ser”, embora na casa do Parque houvesse empregados a ficar sem ordenado.

Apesar de todos os problemas já mencionados, há uma preocupação central que se mantém: “é preciso olhar para esta questão como um problema social grave no sentido de como é que vai ser o dia de amanhã”, afirma.

“Temos que pensar sempre no futuro. Daí o projeto de vida é acompanhar a escola, a parte da saúde, tudo. Quem leva muito a sério depois não dorme, como eu. Eu chego ao final do meu dia e tenho uma enorme dificuldade em desligar. O meu filho tem um problema mental e quando ele adormece, eu respiro fundo e penso assim: hoje já passou. Amanhã é outro dia.”, explica.