Pedro Coelho: “Às vezes sinto que o trabalho que faço é um pouco inglório e ainda assim não deixo de o fazer”
O jornalista da SIC consegue meter o país a falar das suas reportagens com muita facilidade. Foi assim com “Depois da Fraude”, reportagem sobre descalabro do BPN que lhe valeu o prémio Gazeta de Televisão em 2015, e com o “Assalto ao Castelo”, trabalho acerca da queda do império Espírito Santo lançado em março. Pedro Coelho, que também é professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, recebeu-nos para falar do estado atual do jornalismo no nosso país.
O jornalismo de sensações que se pratica hoje em dia incomoda-o?
Incomoda-me muito, confesso-lhe. Lá está outra vez a pressão do mercado e das audiências a falar mais alto. Eu acho que nós hoje estamos a perder o norte. Há aqui uma matéria que devo dizê-la de forma muito clara: acho que, sobretudo as televisões, estão a viver os ecos da contaminação da CMTV, que é um subproduto jornalístico, indiscutivelmente. Isso está a contaminar os outros canais: a TVI24, a SIC Notícias, a RTP3 que é um canal público pago por todos nós. E isso preocupa-me muito. A televisão é um meio demasiado sensível e aquele que mais está refém do entretenimento porque é pesado, é caro e porque ficamos obcecados com a necessidade de ter audiências. De facto, a CMTV, episodicamente, consegue ter audiências com produtos muito, muito maus. Estamos a assistir hoje a uma situação que merece a nossa reflexão. Nós temos produtos de altíssima qualidade na televisão portuguesa, na RTP, na SIC e na TVI; e temos produtos de baixíssima qualidade na televisão portuguesa: na RTP, na SIC e na TVI. No meio não há nada. Nós temos o muito bom e o muito mau e acho que temos de pensar que o que está no meio é muito importante. O grosso de informação que nós produzimos nos 3 canais de informação generalista está a sofrer os efeitos da contaminação do subproduto jornalístico que é a CMTV, e isso é altamente complexo.
É jornalista há 28 anos. Pensa que com o passar do tempo o jornalismo foi perdendo influência?
Quando comecei o jornalismo tinha realmente influência. Talvez não fosse tão bom quanto o jornalismo que nós hoje vamos fazendo, mas tinha influência. Hoje não tem muita porque temos de conviver com muitas formas de comunicação que pululam e poluem a rede. Ou somos verdadeiramente distintivos ou então não conseguimos sobreviver. Eu não esperava que o jornalismo fosse tão desvalorizado 25 anos depois, porque tinha a certeza que o jornalismo iria ser a grande referência da humanidade e hoje, infelizmente, já não é.
Isso deve-se à imersão do “jornalista-cidadão”?
Não acredito nessa história do jornalista-cidadão. Eu também não sou advogado-cidadão, não sou médico-cidadão, nem enfermeiro-cidadão. Isso não existe. Nós somos aquilo que somos. Eu tenho a minha profissão, cumpro um determinado código de conduta e sujeito-me a determinadas regras. Fiz uma formação específica para ter essa profissão e, por isso, sou distinto de todos aqueles que não fizeram esse percurso. Nós estamos agora num momento de fronteira. Ou fazemos alguma coisa para salvar o jornalismo ou morremos com o jornalismo; o jornalismo morre, desaparece e só sobrevive se fizermos um anel de segurança à sua volta. É preciso separá-lo de todas as outras atividades de comunicação como, por exemplo, da comunicação estratégica e das relações públicas. Temos de o tornar num produto único e só assim é que o podemos salvar.
Como é que isso se pode conseguir?
Através da verificação, filtração, código deontológico, ética, de tudo isto. O jornalismo precisa de formação, precisa de ser criado a partir da base. É preciso ir às faculdades e pô-las ao serviço do jornalismo. As faculdades que têm cursos de jornalismo precisam de estar ao serviço ao jornalismo tornando-o distinto logo à nascença. É preciso perceber a real diferença entre o jornalismo e a publicidade, entre o jornalismo e a comunicação estratégica. O jornalismo é, na minha ótica, a profissão mais complexa do mundo porque lida com todos os elementos da natureza. Elementos físicos, naturais e sociais, e é preciso que o jornalismo consiga distinguir-se de todos esses elementos porque exercerá sobre eles uma influência, nunca deixando de se influenciar por eles. O jornalismo tem de ter essa consciência: é profundamente influenciado por fatores externos e influencia permanentemente fatores externos.
É importante cruzar a função de professor com a de jornalista?
Eu acho que o ensino e a redação ou o ensino e o jornalismo são duas atividades complementares. Eu hoje estou a 70% na SIC e a 30% na faculdade. Admito que possa inverter as percentagens, mas independentemente das percentagens, eu acho que uma e outra são complementares. Eu não posso fazer uma sem a outra. Já não gostava de ser jornalista sem ser professor universitário porque o jornalismo que eu faço hoje reflete muito o trabalho académico que tenho feito nos últimos 10 anos. A minha docência tem muito a ver com a minha tarefa enquanto jornalista. Eu não vou ser jornalista a vida toda, mas se continuar a dar aulas, não posso perder o contacto com a profissão. Eu conheço ótimos professores de jornalismo que já foram jornalistas e que agora já não são, mas que nunca perderam o contacto com a redação. Infelizmente sei que há muitos professores que nunca puseram um pé numa redação e isso é preocupante. Professores de jornalismo que não vão a emissões de observação à redação fazer estudos? Isso não faz sentido. Se um dia deixar de ser jornalista e continuar a ser professor, garanto-lhe, em absoluto, que não perderei a minha ligação à redação.
As grandes reportagens mostram muito, mas mudam alguma coisa?
Muito sinceramente, acho que, por mais que eu me esforce, por mais trabalhos que eu faça, por mais verdades que eu e outros colegas consigamos ir desvendando, as coisas mudam momentaneamente, mas não conseguimos mudar o curso das coisas. Há uma autora que eu gosto muito de citar, a Martha Gellhorn, que foi uma grande repórter de guerra. Ela escrevia que o trabalho dos jornalistas não tem efeito, que é um pouco como palavras lançadas ao vento. Ela sabia claramente que o efeito que ela tinha junto dos, vá lá, poderosos, era sempre muito diminuto e eu também estou a perceber isso. Eu meto-me com muita gente, é um facto. Mas essas pessoas continuam todas aí, com o poder que sempre tiveram. Momentaneamente as pessoas olham para elas como “olha, é aquele fulano que aparece na SIC ali numa situação difícil”, mas as pessoas esquecem e essa gente não pára de fazer negócios. Todas as pessoas com que eu me meti estão na vida financeiramente robustas. Às vezes sinto que o trabalho que faço é um pouco inglório e ainda assim não deixo de o fazer porque, pelo menos momentaneamente, aquelas pessoas têm de saborear o fel do que elas próprias criaram.
Investigar gente com poder significa reconhecimento, mas implica um trabalho muito mais criterioso. Isso é um acréscimo de motivação?
A prova à prova de bala é a expressão que gosto de utilizar. Tenho a consciência plena de que se me meto com alguém que tem poder, e se a informação que eu veiculo sobre essa pessoa foi incorreta, aí sim, sou imediatamente destruído. A credibilidade de um jornalista constrói-se com factos à prova de bala e eu tento sempre que isso seja possível. Muitas vezes posso escorregar na casca de banana que me possam lançar, por isso tenho um cuidado imenso para que tal não aconteça e esforço-me muito para que a informação que eu tenho seja uma informação verdadeira. Eu trabalho muito as informações que me chegam. Nunca faço “copy and paste” daquilo que me dizem, nunca vou diretamente para a antena com uma informação que me sussurram ao ouvido por mais interessante que ela possa parecer. Para mim uma informação só é verdadeiramente interessante depois de aplicado o crivo jornalístico e isso eu faço sempre.
De que forma é que é aplicada a filtração de informação?
A ideia de cruzar informação é essencial para quem faz jornalismo de investigação e eu sou um jornalista de investigação logo passo a vida a cruzar informação. Há muitas maneiras de nós conseguirmos chegar à fonte. Muitas vezes nós tornamos-lhe a vida tão difícil que ele só tem um caminho, que é falar connosco. É preciso confrontar a personagem diretamente implicada na história com a informação e com o trabalho que nós fazemos, com transparência, porque se queremos que alguém nos diga alguma coisa não podemos esconder informação a essa pessoa; temos que ser transparentes o suficiente para levar a pessoa a perceber que não tem outra alternativa que não seja falar connosco. Isto tudo para lhe dizer que qualquer confronto com fontes poderosas, com destinatários de informação verdadeiramente poderosos, são um acréscimo de trabalho para o jornalismo. É um acréscimo de verificação, de sustentação do próprio trabalho.
Há alguma matéria que mereça um foco especial do trabalho jornalístico?
Eu acho que o jornalismo tem de ter uma preocupação social. Eu gosto de citar o Kapuściński quando ele diz que “o jornalista tem de ser um bom homem ou uma boa mulher, os maus não podem ser jornalistas”. Eu acho que é determinante nós pensarmos assim. Uma pessoa com um caráter abaixo da média, não é – ou não deveria – ser jornalista. Nós temos de viver a nossa vida, naturalmente; mas temos de saber que a nossa vida está ligada à vida das pessoas. Eu tenho sempre uma barreira muito grande entre eu próprio e a fonte. Mas isso não quer dizer que eu não interaja com a vida daquela pessoa com a qual eu estou a trabalhar, e não pense que o poder que eu tenho momentaneamente pode ser altamente positivo para aquela pessoa – ou negativo, dependendo da forma como eu o usar. Eu nunca ultrapasso a fronteira. Ninguém me é indiferente, mas penso que essa barreira não deve ser ultrapassada.
A televisão passa o que deve ser visto ou o que as pessoas querem ver?
Se me pergunta o que a televisão passa, eu digo-lhe que o critério, infelizmente, é aquilo que as pessoas querem ver; se me pergunta o que é que eu acho, eu acho que essas matérias não geram audiências. E nós estamos de facto estamos muito condicionados pelas audiências. Em canais comerciais é inevitável, temos de ser claros. Nós não podemos trabalhar para ninguém, temos de ter audiências. Mas sobretudo o que nós temos de ter é público, e isso é diferente de audiências. Quando nós trabalhamos para um público sabemos para quem estamos a trabalhar: alguém crítico que nos ouve e nos vê e que, em função daquilo que nós lhe dizemos, age – ou não – criticamente. As audiências são meramente reativas porque reagem a estímulos e funcionam como uma massa. O publico não, porque é específico, e eu gosto mais de trabalhar para públicos do que para audiências porque sei que estou a trabalhar para alguém que vai reagir, mesmo que seja negativamente, à mensagem que estou a veicular. Quando começamos a trabalhar para audiências ficamos muito mais condicionados, claramente.
Receia que o jornalismo se torne numa profissão de secretária, com um horário estipulado?
Ainda que nada contra as profissões das 9 às 5, o jornalismo é uma profissão sem horário, mas nós também estamos a tornar o jornalismo numa profissão das 9 às 5. Temos um turno para cumprir, vimos cá e depois vamos para casa todos contentes como nada de mais importante acontecesse. É pena porque de facto, irmos para casa, fechamos a secretária como se nada tivéssemos feito de extraordinário durante o dia, isso é a tal banalização de que lhe falava. Até nisto nós somos banais. Nós não podemos ser uma profissão das 9 às 5; nós não podemos estar dependente do serviço que nos marcam e fazê-lo o mais rapidamente possível para irmos embora. Não deveria ser esse o mote do jornalismo e, infelizmente, é.
A imagem é um factor preponderante para quem faz televisão. Como se convence alguém a dar a cara sobre assuntos delicados?
É muito difícil convencermos alguém que não quer ser convencido. Mas há desde logo uma ideia que eu gosto de passar às pessoas que é: eu só entrevisto pessoas de cara tapada cuja vida possa ficar em risco; essas pessoas têm de ter alguma coisa muito importante a esconder e, para isso, elas próprias entendam que devem ser protegidas. De outra forma não faz sentido eu estar a entrevistar uma pessoa de cara tapada. Não me parece que isso seja jornalisticamente viável. Muitas vezes eu tento convencer as pessoas através da transparência que acho que me caracteriza. Explico-lhes por que razão elas devem falar e nunca lhes prometo nada. Nunca disse “você fala comigo e a sua vida vai mudar”, até porque não acredito nisso. Insisto nisso! Eu acho que o jornalismo tem um papel importante na sociedade, mas não é tão importante como aquele que deveria ter. Por mais coisas que façamos, por mais verdades que possamos descobrir, nós não vamos mudar grande coisa na sociedade. A sociedade está de tal forma formatada, de tal forma hierarquizada… então neste pequeno país onde nós vivemos. Esta ligação da política à economia é de tal forma obscura que nós não conseguimos vencer os poderosos.
É um ciclo vicioso?
Sem dúvida. Posso dizer-lhe 5 ou 6 pessoas que já estiveram na mó de baixo e agora estão de novo na mó de cima porque as instituições a que estão vinculadas as protegem. E nem estou a falar da Maçonaria ou da Opus Dei. Estou a falar das ligações naturais das pessoas. Claro que a Maçonaria e a Opus Dei ajudam, mas nem sempre são necessárias. Muitas vezes sobrevivem a tudo porque estão muito bem ancoradas, porque já fizeram muitos favores e passam a vida a cobrá-los. Estão na mó de baixo agora, cobram um favorzinho que já antes tinham feito e passam a vida nisto. E o facto de a justiça ser tão demorada faz com que estas redes se eternizem porque nunca são verdadeiramente detetadas. Quando são detetadas são parcialmente detetadas. E o grau de deteção que o jornalista concretiza nunca é suficientemente abrangente para que aquela rede seja puramente desguarnecida. Ela pode romper de um lado, mas cose do outro. Nós temos de ter a noção de que quando fazemos jornalismo de investigação não vamos mudar o mundo. Eu já perdi essa ilusão há muito. A única coisa na qual eu insisto é: eu tenho um compromisso para com a sociedade e esforço-me para cumpri-lo, que é trazer luz sobre matérias que estão obscuras, ou pelo menos eu contribuo para que as pessoas que me respeitam, que me veem, que me ouvem, fiquem com a clara convicção de que pode não acontecer nada a seguir, mas eu momentaneamente informo as pessoas. Faço-lhe luz sobre determinadas matérias, percebe. E isso é bom, é importante para a vida das pessoas.