Filth (2013)
Estreou em outubro de 2013 no Reino Unido mas a sua pouca ou quase nula notoriedade em território português fez-me sentir a necessidade de partilhar esta relíquia do cinema independente de 2017 – Filth. Realizado e escrito por Jon S. Baird, o argumento é baseado no livro com o mesmo nome de Irvine Welsh, autor do icónico Trainspotting.
Desde cedo se percebe a influência de Welsh na premissa do filme: uma visão depreciativa da vida suburbana de Edimburgo pelos olhos de um protagonista frustrado e em negação, com referências ao sexo, drogas, álcool e corrupção. Contudo, apesar da semelhança dos temas de Filth e Trainspotting, as obras não podiam ser mais distintas. Em vez de incidir sobre o dia a dia das classes baixas e o seu consequente mergulho deteriorante no mundo do crime, o pólo inverte-se e a audiência contempla o percurso turbulento de um sargento bipolar e maníaco em busca da desejada promoção a detetive inspetor.
James McAvoy é quem dá vida ao referido protagonista, o sargento Bruce Robertson. Naquele que terá sido um dos melhores papéis que alguma vez desempenhou, é o ator escocês que dá inércia a Filth e o torna eletrizante e realisticamente humano em todos os seus aspetos. Robertson é a corda para o filme, é quem confere sentido a todos os pontos do enredo, é o cerne da história e fá-la progredir a várias velocidades rumo ao clímax. A representação da sua mente perturbada é um dos pontos fundamentais da narrativa e só um ator com provas garantidas conseguiria estabelecer uma união feliz com a personagem.
A escolha de McAvoy assentou que nem uma luva, assim como a do restante sólido elenco, no qual se incluíram, entre outros, Jim Broadbent e Jamie Bell. Esta situação faz transcender o desenho da complexa natureza da relação humana e da própria antítese da impessoalidade das relações interpessoais. Não há tabus nem limites de informação. Os desejos subconscientes são transpostos para primeiro plano, algo que já sucedera em Trainspotting, e testemunhamos a emergência de diversos traços selvagens e manipuladores que o ser humano finge não ter.
Há também outros fatores que refletem a obscuridade de sensações que vagueiam por dentro da cabeça das personagens, principalmente do protagonista. Efeitos especiais com diálogos incongruentes surgem espaçados, servindo de elo de ligação aos comportamentos exibidos por Bruce Robertson ao longo da trama: as cenas surreais do filme servem de fundamento para os comportamentos das personagens. Baird fez um trabalho notável nestas cenas mais alucinantes que nos permitem entender com total clareza o desnorte e o drama inerentes às diversas personagens, recorrendo a uma realização personalizada, bem ao estilo anglo-saxónico.
Ainda assim, acaba sempre por existir uma chamada de volta à realidade. Um assentar de pés na terra. Isso está representado no inevitável sentimento exacerbado de culpa e arrependimento subtilmente presente ao longo da narrativa. Não obstante ser um gregário invisível durante todo o filme, a culpabilidade dos protagonistas reluz no desenlace do argumento. Apesar disso, não suaviza algumas cenas mais chocantes que ficam registadas na nossa memória. Para quem vive uma vida de flores brancas e cor-de-rosa com aroma a framboesa e baunilha, muito do que se passa em Filth será conotado quase como uma heresia – mas vindo do imaginário de Irvine Welsh, acaba por ser um elemento natural indispensável à trama.
Filth é uma obra-prima inglória que reside na sombra dos grandes êxitos comerciais de Hollywood. Arrojado e inovador, é um trabalho que culmina com uma chapada forte no semblante dos espetadores, tal a natureza incisiva da mensagem transmitida (a qual não vou revelar), adornada por mais uma crua visão da sociedade industrial escocesa. Certamente que não agradará a todos, mas Jon S. Baird brinda-nos com o melhor vinho possível do cinema independente britânico. A sua visualização é recomendada.