Lorde: quando a pop se torna introspetiva
“Fluorescente”: quando Lorde descreve o seu primeiro relacionamento desta maneira na música “Supercut”, percebe-se facilmente o recurso à sinestesia, à sua capacidade de aliar sons, ritmos e produções a padrões de cores. Em Melodrama as cores são fortes, elétricas e brilham de forma incandescente. Mas o néon não resistirá para sempre, e toda a sua frenética requer uma química estudada. No entanto, quando este chega ao fim, é preciso uma parte mais sombria e melancólica para contrastar. Esta fórmula é a premissa deste novo álbum: não só retrata o crescimento da cantora, mas também a sua resistência, de alguma maneira amarga, a novos sentimentos – sentimentos de solidão, desilusão e euforia.
A história é conhecida. Com o primeiro álbum, Pure Heroine, editado em 2013, Ella Yelich-O’Connor, o seu verdadeiro nome, na altura com apenas 16 anos, transformou-se num caso de enorme sucesso global, sendo apresentada como contraponto às celebridades da pop, que, na visão do senso comum, serão cativas de gestores de carreira. Na verdade, não era fácil enquadrá-la num arquétipo: por um lado, Lorde escrevia sobre aquilo com que muitos jovens se podiam identificar, — a agitação desordenada da adolescência dentro de uma perspetiva forasteira e secundária. Por outro lado, a música que apresentava não era típica desse público-alvo: produções minimalistas, sempre reduzidas ao essencial, com uma abordagem bastante segura, que buscava influências à eletrónica e ao dream-pop. Deste modo, nasceu “Royals”, o single de estreia que projetou a nova-zelandesa a escalas mundiais. Não só foi nº1 em todo o mundo, como também recebeu aclamação por parte da crítica e rendeu dois Grammy’s à artista em 2014.
O sucesso estava garantido e Lorde começou a ser motivo de discussão por toda a indústria musical. Foi uma questão de tempo até a cantora começar a passar pelas passadeiras vermelhas das celebridades, que antes desaprovava por se enredarem nas armadilhas do materialismo. Assim, a pressão para o segundo disco fez-se sentir de tal modo que foram precisos quatro anos para o ver nascer. Mas aqui está: quatro anos depois, Lorde volta com Melodrama, uma assinatura impugnante, sincera e fora dos padrões conformistas a que a música pop das massas nos habituou.
Lorde foi coesa o suficiente para focar este novo trabalho num tema em concreto, mas também perspicaz para não rotular Melodrama como álbum conceptual. A verdade é que as histórias giram em volta da primeira festa a que foi, pouco depois do fim do seu primeiro relacionamento. As emoções, os nervos e as inquietudes estão tão presentes na memória da cantora como nas onze faixas deste disco.
“Green Light” dá início à narrativa. O primeiro single, lançado em março deste ano, apresentou logo à partida uma mudança sonora no catálogo de Lorde: as batidas explosivas eletrónicas captaram a atenção de um público mais abrangente, o que fez com que a canção chegasse ao topo das paradas musicais. Contudo, é a letra que cria o seu próprio misticismo: “I do my makeup in somebody else’s car/ We order different drinks at the same bar”. A protagonista não consegue acalmar a inquietação que atormenta a sua cabeça e que a impede de desfrutar da festa: “she thinks you love the beach, you’re such a damn liar”. Há uma sensação quase incomensurável de libertação e de serenidade que a vocalista quer alcançar, mas que, por enquanto, se perde por entre o barulho exacerbante e os fumos claustrofóbicos da festa.
A primeira metade de Melodrama apresenta então esta imagem mais assertiva, uma bravata mais pedante, que vai ao encontro do hedonismo escondido da cantora. Isto verifica-se em músicas como “Sober”, “Homemade Dynamite” e “The Louvre”: a produção é a mais ousada que Lorde alguma vez apresentou – talvez devido à ajuda mestre de Jack Antonoff, o responsável por hits como “Brave”, de Sara Bareilles, “Stand By You”, de Rachel Platten ou grande parte do “1989”, de Taylor Swift. Vozes roucas, synths pesados e distorcidos caraterizam este ambiente desassossegado, mas essencial para o luto que Lorde está a fazer – ou pelo menos tenta. Esta parte culmina com a frase “broadcast the boom, boom, boom, boom, and make ‘em all dance to it”, que resume um estado alarmante e, ao mesmo tempo, excitante, nunca antes vivido pela cantora.
Por sua vez, a segunda parte foca-se mais no fim da relação, onde a artista confronta as suas inseguranças, os seus medos e as suas incongruências, de modo a tentar perceber realmente o que correu de errado. Assim, as batidas energéticas acalmam-se ao som de “Liability”, o primeiro single promocional retirado de Melodrama que nos remete para as baladas de “Deserter’s Songs” de Mercury Rev. Aqui, Lorde apresenta-se no seu estado mais vulnerável, condenando-se por ser demasiado complicada para amar: “says he made a big mistake of dancing in my storm/said I was poison”.
Já “Hard Feelings/Loveless” é o momento mais pungente — uma faca de dois gumes: a industrial, guinchante e imponentemente triste “Hard Feelings” contrapõe-se à poppy, sem remorsos, “Loveless”, onde Lorde afirma destruir a vida do rapaz que lhe partiu o coração e, depois de limpar as lágrimas, voltar a ser quem outrora foi de cabeça erguida. Cada música tem os sentimentos à flor da pele, variando entre os conflitos interiores da cantora e o cinismo do exterior, que, de um modo geral, pertencem ao mesmo novelo existencial. Daqui, parte-se para “Writer In The Dark”, um dos pontos mais brilhantes e cristalinos do álbum. O piano intimista alia-se na perfeição aos falsettos que nos fazem lembrar Kate Bush. E rapidamente somos envolvidos na canção que encerra esta história, “Perfect Places”, o segundo single: uma ode deveras irónica às saídas sem sentido, aos engates superficiais, às noites tão vazias como os copos que se bebem.
Lorde não quer transmitir esta faceta mais festivaleira como sendo uma etapa crucial na entrada para a idade adulta: quer é abraçar a insatisfação, o prazer, o desespero e a consolação que assinalaram este período da sua vida. E é esta a magia de Melodrama: um álbum clássico que permite a uma jovem, ainda em ascensão, explorar a catarse ao mundo da maneira mais lógica (ou talvez nem tanto), verdadeira e frágil que alguém com 20 anos consegue fazer. A humanidade está intacta. A sua mestria assegurada. O seu brilho durará muito além das luzes fundidas da festa.