Cinema e Televisão

A ascensão do fenómeno do true crime: o preço da tragédia

Nos últimos anos, o fenómeno do true crime tem conquistado um lugar de destaque e enorme popularidade nos media e no entretenimento, dominando as plataformas de streaming e cativando audiências globais. A ascensão deste género é uma manifestação do crescente interesse e fascínio com o lado mais sombrio da natureza humana. No entanto, enquanto o true crime se consolida como um negócio muito lucrativo, surgem questões sobre a moralidade de transformar tragédias da vida real em fonte de lucro.

O interesse por crimes e investigações criminais não é algo recente. Desde sempre que estes géneros se viram representados na cultura popular, desde a literatura clássica, ao cinema e, mais tarde, à televisão. No século XVI, com o desenvolvimento das publicações em massa, começaram a circular panfletos que detalhavam crimes e as suas histórias macabras, alimentando o fascínio do público por estas narrativas. Mais tarde, autores como, por exemplo, Edgar Allan Poe e Agatha Christie, consolidaram as narrativas de mistérios e crimes, imortalizando o género na literatura. 

No século XX, as séries televisivas como Mentes Criminosas ou C.S.I expandiram este fascínio por investigações criminais, alcançando uma audiência ainda maior. No entanto, o boom de popularidade que o true crime teve nos últimos anos vai além do tradicional interesse pelo mistério. Uma das razões para a popularidade do true crime prende-se, não tanto com o enigma e a “sensação de detetive” por parte do público, mas sim com o fator de autenticidade. Há algo terrivelmente intrigante e que nos prende, ao saber que tudo aquilo que estamos a ver/ouvir não aconteceu num mundo de fantasia, mas sim naquele em que vivemos.

A experiência proporcionada pelo true crime é muito mais imersiva e envolvente, pois o consumidor deste género sente-se completamente absorvido pelo mistério, como se ele próprio fizesse parte da história. O crescimento explosivo do true crime está assim muito ligado ao papel das plataformas de streaming (Netflix, HBO, etc.), mas também ao papel das redes sociais (Youtube, TikTok, etc.) na difusão do género. Séries como Making a Murderer, Cold Files e Conversations with a Killer: The Jeffrey Dahmer Tapes transformam casos antigos em sucessos globais, atraindo cada vez mais fãs. Simultaneamente, redes sociais, como o YouTube e o TikTok, abriram novos espaços para a partilha e debate de teorias sobre o que realmente ocorreu nesses casos, enquanto podcasts como  Serial atraem milhões de ouvintes, proporcionando ao true crime um formato mais próximo e acessível.

Fonte: Netflix

Apesar do seu sucesso, o género do true crime levanta questões éticas importantes de considerar. Embora exista mérito em tentar dar voz àqueles que foram injustiçados, nem todas as produções são abordadas com o mesmo cuidado e sensibilidade. O que para muitos pode ser simplesmente entretenimento, para as famílias das vítimas é uma revivência de todo o seu sofrimento. Em muitos dos casos, estas histórias são completamente sensacionalizadas de forma a atrair mais audiência. Muitos documentários, podcasts e youtubers focam-se, não na história da vítima desses crimes, mas sim nos detalhes gráficos e violentos destes eventos. Esta escolha de foco faz com que os criminosos sejam vistos como pseudo-celebridades, diluindo a severidade dos seus crimes. Assassinos como Ted Bundy têm sido romantizados e até idolatrados por alguns. Este fenómeno francamente perturbador desrespeita as vítimas e as suas famílias, que, para além de verem a sua história deturpada com o único propósito de aumento de audiências, vêem os agressores a tomarem o protagonismo e os seus crimes banalizados. 

Enquanto consumidores é essencial questionarmos a forma como estas histórias são contadas e selecionarmos com cuidado as vozes que legitimamos para as contar. É necessário não nos esquecermos que estes casos envolvem pessoas reais e acontecimentos reais, cujas vidas foram profundamente marcadas por estas tragédias. Contudo, se abordado com responsabilidade o true crime tem o potencial de educar, informar e até de contribuir para a resolução de alguns casos. 

Alguns criadores de conteúdos têm dado o exemplo ao apresentar as histórias com o devido respeito, compaixão e empatia. Um bom exemplo é o podcast True Crime with Kendall Rae, criado por uma youtuber que sempre se esforçou para apresentar os casos com sensibilidade, colaborando até com as famílias das vítimas, garantindo que as suas histórias sejam contadas da melhor maneira possível. 

Fonte: Tubefilter

O sucesso e lucro do true crime não deve, de forma alguma, sobrepor-se à sua responsabilidade ética. Como leitores, ouvintes e/ou espectadores, devemos sempre procurar dar audiências a quem encara este género com compaixão e respeito, lembrando-nos sempre que, para além dos ecrãs, estas histórias são o reflexo de vidas reais e dores profundas. É possível apreciar o true crime sem nos esquecermos da humanidade que o define.

Fonte da capa: Netflix

Artigo revisto por Carolina Ferreira

AUTORIA

+ artigos

Embora esteja (ligeiramente) mais perto dos 30 do que dos 3, a Beatriz nunca passou da idade dos porquês. A sua curiosidade inata é o que a faz interessar-se por mil e um temas, podendo ficar horas a falar sobre qualquer assunto (se não a mandarem calar). Não troca nada deste mundo por um bom café acompanhado de uma conversa que a faça pensar. Entrou para a ESCS Magazine com o desejo de reavivar a paixão pela escrita, algo que cultiva desde a infância, e para continuar a satisfazer o seu amor por conversas intermináveis, agora traduzidas em texto.