Fernando Correia: “Escrevi e abri o meu coração”
Aos 80 anos é considerado uma das melhores vozes do jornalismo radiofónico e é dos jornalistas mais respeitados no mundo do desporto. Sportinguista durante toda a vida, nunca se deixou levar pelo amor ao clube na profissão. Com mais de 30 livros editados, foi no início deste ano com o livro “Piso 3, Quarto 313” que vendeu mais de dez mil exemplares. Agora regressa com um novo romance, “O Homem Que Não Tinha Idade”. Se no primeiro abordou a doença da companheira – o Alzheimer –, agora é o abandono dos velhos que ganha destaque nas páginas deste livro.
Se calhar, muitos de nós já dissemos muitas vezes que não abandonaríamos os nossos pais num “lar”, mas a verdade é que são muitos os pais que acabam em lares, abandonados no tempo e no desconhecido.
Esquecidos num “lar”, na promessa de uma velhice melhor, acabam a morrer ao sabor dos dias negros, sem ninguém ao seu lado. Lar significa casa, mas muitos destes lares são tudo menos casas. Casa é onde está, verdadeiramente, o nosso coração, o nosso passado e a nossa vida. Casa é onde nos completamos. Que justiça existe para tirar isso no final da vida aos pais?
Não pensamos nisto – e isso traz-nos este livro –: em como hoje somos filhos, mas amanhã seremos pais. Com isto, não falo na obrigatoriedade que a sociedade impõe em termos filhos, para “assegurar a regeneração”. Seria, talvez, mais importante “assegurar” a educação e o respeito, mas isso são outros quinhentos. Falo aqui de sermos, um dia, pais dos nossos pais. Alguma vez pensámos em tudo o que eles deram e em tudo aquilo de que desistiram para serem nossos pais?
Vivemos numa sociedade que alimenta o egocentrismo, mas paremos um minuto para pensar nos outros, naqueles que nos deram tudo. Fernando Correia pensou e escreveu. Ainda antes de internar a companheira – por doença –, visitou alguns lares onde se deparou com o companheiro do abandono: a solidão.
A entrevista
BM: Nunca teve medo de ficar amargurado com as desilusões da vida e de perder algum do seu afeto?
FC: Sempre tive uma grande capacidade de resistência. Eu digo que costumo falar sobre tudo quando estou de serviço e que cá fora sou muito mais calado e introspetivo e acho que ter essa resistência foi um dom que o Universo me terá dado. E essa capacidade de resistência faz que eu encare a vida de uma maneira diferente. E tenho tido a felicidade de ter tido poucos momentos que não consigo ultrapassar. Sempre que tive algum obstáculo – e tive muitos obstáculos na minha vida – consegui ultrapassá-lo. Há sempre alguma coisa, que não sei explicar o que é, que me faz ir em frente, que me faz ser feliz. Mesmo quando não tinha dinheiro, aparecia um trabalho. A TSF despediu-me de forma insólita, por ordem do Joaquim Oliveira – dono da TSF (hoje não está sozinho) –, que mandou o José Fragoso, diretor da TSF, pôr-me na rua, porque eu tinha sido convidado para ser diretor do Jornal Desportivo – o primeiro jornal desportivo diário gratuito – e o Joaquim Oliveira achou que esse jornal fazia concorrência ao Jogo, que era o jornal da empresa dele. Foi um momento de grande tristeza. O Fragoso meteu-me na rua, mas não teve coragem de mo dizer nas instalações da TSF. Foi num hotel. Saí de lá a pensar que tinha de dizer às minhas filhas que tinha sido despedido, quando o telemóvel tocou e era o Luís Osório a dizer: “Fernando, foste despedido, pah? Andam todos a dizer isso. Ouve lá, vou abrir uma nova Rádio Clube Português. Queres vir para cá?”. Eu disse que queria e entrei no dia seguinte. Por isso é que digo que os momentos de infelicidade foram sempre tapados por grandes momentos de alegria e de reconhecimento daquilo que eu sou.
Isso também aconteceu com os livros que escreveu?
Até hoje tinha escrito 34, 35 livros e nenhum deles teve visibilidade. Estão lá em casa as edições de cada um. Os meus filhos têm, a Clara – produtora do Fernando – tem, mas nunca tiveram visibilidade. E eu estava triste. Acho que não escrevo com erros, que não escrevo mal, mas os meus livros não saem. E houve um dia em que o diretor da Guerra e Paz, o Manuel Fonseca, me encontrou por acaso num centro comercial e me disse: “Ainda bem que o vejo! Gostava muito de que escrevesse um livro para a Guerra e Paz”. Eu estava a passar por um momento complicado, porque a minha companheira ia ser internada, porque está muito doente com uma doença. “O livro é mesmo sobre isso! Escreva-me essa história” e eu escrevi a história e o livro foi um êxito fantástico, pela primeira vez na minha vida; e por causa de uma doença puseram nas minhas mãos mais de dez mil exemplares vendidos. E depois fizeram mais mil, que eu saiba.
Não lhe custou escrever sobre o momento que vive com a sua companheira?
Eu fi-lo, não para dar visibilidade ao meu drama, porque o drama dela é maior. Ela é que está doente e tem um drama maior que o meu, certamente. Eu escrevi o livro com o intuito de explicar às pessoas como é que devem proceder quando têm um familiar com a doença de Alzheimer. Tenho a certeza de que as pessoas não sabem o que é o Alzheimer; os médicos não sabem; os doentes têm manifestações que nos levam a dizer que “esta pessoa não está boa da cabeça”, porque não está de facto. Só fazem disparates, e nós, familiares, zangamo-nos porque não percebemos. A minha companheira esteve comigo durante sete ou oito anos com esta doença a evoluir e os médicos só davam medicamentos e faziam exames e ela a fazer disparates, disparates e mais disparates. Nós somos seres humanos e eu não sabia que ela estava assim e irritava-me e zangava-me com ela. Escrevi e abri o meu coração: não façam o que eu fiz. Está completamente errado. Tentem compreender o doente, perceber que ele está muito doente; tentem perceber que aquele corpo não pertence àquela mente; aquela mente já está noutro lado qualquer. O corpo está ali intacto, mas a mente não está. O ser humano é um todo de complexidade e não podemos parti-lo em bocadinhos, e eu só entendi isso depois de me zangar com ela muitas vezes e percebi que não podia continuar a estar errado e emendei-me. Fui tendo outro tipo de diálogo…outro tipo de monólogo com ela; outro tipo de atitude e de compreensão. Quando ela comer a sopa com a mão, não ralhem. É o pior que podem fazer, porque ela não sabe o que está a fazer e vai revoltar-se contra nós. Tive de pôr a minha alma a nu e contar a história dela.
Os seus cinco filhos e dez netos…
11 netos. Uma das filhas está grávida, de quatro ou cinco meses.
Os seus filhos e os onze netos são a maior obra da sua vida?
Claro que sim! Acho que a obra que nós fazemos consiste em, primeiro, cumprir o nosso ciclo de vida da forma mais correta e que nós entendemos ser a melhor, de forma a não magoar as outras pessoas; depois compreender o sítio onde nascemos e vamos morrer: a terra. Os filhos são, naturalmente, uma obra. Nós fazemo-los porque queremos. Fazer os filhos é dar continuidade à vida; é fazer que isto tudo se continue a movimentar e ter a certeza de que quando se morrer, se morre feliz, porque se deixa uma obra cá. Acho que, quando morrer, morro feliz. Tive medo já de morrer, muito medo.
Pelos seus filhos?
Por mim. Já tive, mas agora não tenho. Quando for altura, partirei completamente feliz e deixarei as pessoas felizes pela obra que eu deixei, pelo que eu construí. Não faz sentido ter medo de morrer, mas eu já tive.
Medo de morrer, erros, vitórias, desilusões… tudo fez parte da vida de Fernando. E tudo fez parte da vida de João, um senhor sem idade, que quer viver e vai viver. Onde quer, como quer e com quem quer, mas sem nunca esquecer os filhos. Apesar de saber que o queriam depositar num “lar”, para não terem trabalho com ele, ele continua a amá-los. Filhos são filhos e pais serão sempre pais. Que nunca se esqueçam os filhos disso.
AUTORIA
Sempre a reclamar, lá vai escrevendo umas coisas.
Acha que tem tempo para fazer mil coisas e dormir deixou de fazer parte do seu dia-a-dia. Jornalismo é a sua paixão e escrever é o seu modo de ser.