Opinião

A 4 Mãos: Adultério no casamento ou na justiça?

 

Maria Moreira Rato (MMR): “O adultério de uma mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade de um homem.” — acreditas que esta frase consta num acórdão do Tribunal da Relação do Porto?

 

Marcos Melo (MM): O caso é insólito. O que, à partida, parece uma piada de mau gosto (não vivêssemos nós na era das fake news), é, de facto, um episódio verídico protagonizado pela Justiça Portuguesa, e materializado, para a posteridade, por este caricato Acórdão do Tribunal da Relação do Porto. É inadmissível que um juiz, a quem compete o escrupuloso cumprimento da Constituição Portuguesa, se guie por ideais machistas, misóginos e outros que tal. Contudo, esta atitude retrógrada não me espanta, na medida em que vivemos num país também ele retrógrado, em que o machismo e a misoginia (só para mencionar dois de uma extensa lista de preconceitos) se esgueiram ao virar de cada esquina, embora camuflados por uma hipocrisia com a qual todos nós somos coniventes.

Maria, na tua opinião, este cenário é representativo da sociedade portuguesa ou, pelo contrário, estarei eu a exagerar?

 

MMR: Bom, antes de mais, acho que devemos perceber que nem todos os homens sobrevalorizam as suas características e/ou odeiam as mulheres simplesmente por serem mulheres. Contudo, o que me assusta é a manifestação desses conceitos. Se analisarmos esta situação, ficamos com a ideia de que o sistema judicial português (e, quiçá, toda a sociedade) assenta no patriarcado: uma parte dela, obviamente que sim, mas aconteceu algo que remonta ao direito Romano, ou seja, não estamos a falar do adultério como um termo que surgiu ontem e que não é aceite hoje.
Na Lei das Doze Tábuas constava que o adultério era um crime contra “o pai de família e os bons costumes”; no direito medieval, considerava-se dois tipos de adultério: o “teórico” (ver uma mulher a falar com outro homem) e o “prático” (encontrá-los a realizar algum ato de cariz sexual, por exemplo). O que me choca é o seguinte: achamos que realidades como aquelas que referi anteriormente são muito longínquas, mas em Portugal (sim, no nosso país), até 1982, o cônjuge que encontrasse a esposa a praticar adultério, estava sujeito somente a uma pena de desterro por seis meses caso os matasse ou magoasse de outra forma.
Bom, no atual Código Penal, já não se menciona o adultério uma única vez… Porém, é uma daquelas questões sensíveis que podem não ser referidas que continuam a gerar controvérsia, não achas?

 

MM: Citando o escritor Valter Hugo Mãe, que se pronunciou publicamente, na sua página de Facebook, sobre a polémica, este caso é um espelho do “puro nojo dos dias de hoje”. Provavelmente, dir-me-ás que o meu olhar sobre a sociedade é demasiado cáustico. Talvez. Mas eu não acredito em contos de fadas.

Concordo contigo quando referes que “nem todos os homens (…) odeiam as mulheres”. Claro. Há que ter cautela com as generalizações — admito-o. Mas, infelizmente, esta atitude patriarcal (em que a esposa é submissa ao marido) é uma realidade demasiado enraizada nos nossos brandos costumes. Parece-me que, nos centros urbanos, é mais tímida, pois está camuflada pelo politicamente correto. Contudo, é no meio rural que todos os preconceitos vêm à tona. Não quero com isto afirmar que a povoação rural é uma cambada de pacóvios — longe de mim (veja-se, por exemplo, a mobilização dessas pessoas perante a tragédia dos incêndios). Já no meio digital (leia-se redes sociais), os trolls não têm qualquer pudor em dizer (aliás, escrever) as maiores alarvidades possíveis e imaginárias.

É preocupante verificar que altas patentes das nossas instituições democráticas defendem, com unhas e dentes, estes ideais. Vejamos o que o Conselho Superior da Magistratura tem a dizer sobre um juiz que se rege pela Bíblia e não pela nossa bíblia de direito democrático, a Constituição da República Portuguesa.

Respondendo à tua pergunta, eu diria que a Lei nem sempre acompanha o contexto da sociedade. Por exemplo: a Lei prevê o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, mas a sociedade ainda torce o nariz quando dois homens ou duas mulheres juntam os trapinhos. Portanto, o facto de o adultério não estar explicitamente mencionado no Código Penal não impede, como estamos a constatar nesta discussão, que o mesmo continue a ser julgado, nem que seja apenas no plano moral. Mas isto só no caso de a mulher ser a prevaricadora — qual Maria Madalena mártir de todos os pecados femininos.

 

MMR: Certamente terás ouvido várias vezes a expressão “quem está no convento é que sabe o que lá vai dentro”: por isso e muito mais, não gosto de dividir as ocorrências por mundo urbano, rural, periurbano, o que seja.
Pensa comigo: o Porto é a segunda maior metrópole portuguesa, todavia, a situação de que estamos a abordar ocorreu precisamente em Felgueiras, tal como a advocacia é uma profissão que pressupõe uma série de princípios, mas o juiz Neto de Moura realizou um atentado à igualdade de género!
No artigo “O Posicionamento da Mulher na Sociedade Portuguesa”, do Professor Alberto Vara Branco, podemos ler “embora não haja qualquer fundamento psicológico que justifique (…) que a mulher tenha menores capacidades que o homem, a convicção de que tal fundamento existe tem servido para perpetuar a desigualdade, dificultando o processo de mudança de atitudes e a verdade é que se consultares o relatório Igualdade de Género em Portugal: indicadores-chave 2017, perceberás que 80% das vítimas de violência doméstica são mulheres e 84% dos denunciados pela realização desse ato são homens.
Não sei que rumo terá esta história, mas de uma coisa estou certa: hoje, o Movimento Democrático das Mulheres exprimiu o seu desagrado perante o acórdão, referindo-se ao mesmo como um “prelúdio da mentalidade arrogante”. Daqui a umas horas ou amanhã, começarás a ver comentários como: “Já cá faltavam as feministas!”. E é isto que odeio, o adultério das palavras (porque sabemos que o feminismo engloba movimentos, teorias, filosofias, etc., com o objetivo de defender ambos os géneros!), da sociedade e, acima de tudo, da justiça em prol da ignorância e nunca do progresso.

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AUTORIA

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Diz que é o cota da ESCS MAGAZINE. Testemunhou o nascimento do projeto, foi redator na Opinião e, hoje, imagine-se, é editor dessa mesma secção. Recuando no tempo... Diz que chegou à ESCS em 2002, para se licenciar, quatro anos mais tarde, em Audiovisual e Multimédia. Diz que trabalha há nove no Gabinete de Comunicação da ESCS – também é o cota lá do sítio. Diz que também por lá deu uma perninha como professor. Pelo caminho, colecionou duas pós-graduações: uma em Comunicação Audiovisual e Multimédia (2008) e outra em Relações Públicas Estratégicas (2012). Basicamente, vive (n)a ESCS. Por isso, assume-se orgulhosamente escsiano (até ser cota).