A 4 Mãos: Liberdade de importunar!?
Uma rubrica de Opinião escrita a quatro mãos por Maria Moreira Rato e Marcos Melo
Maria Moreira Rato (MMR): Nos últimos dias, ouve-se falar na famosa “carta da atriz Catherine Deneuve”. Antes de mais, há algo que tem de ser esclarecido: a carta foi assinada por outras 99 personalidades, como a escritora Catherine Millet ou a cineasta Brigitte Sy. Posto isto, creio que é necessário evocar as frases mais marcantes do dito documento, que surgiu em jeito de resposta ao movimento #MeToo, popularizado na imprensa e nas redes sociais através da denúncia de indivíduos que tenham praticado crimes de foro sexual:
“Os homens têm sido punidos, forçados a sair dos seus empregos, quando tudo o que fizeram foi tocar no joelho de alguém ou tentar roubar um beijo”
“A violação é um crime, mas tentar seduzir alguém, mesmo de forma insistente ou desajeitada, não é – e o cavalheirismo não é uma agressão machista”.
Pois bem, a primeira coisa que tenho a apontar é a seguinte: a expressão “liberdade de importunar” surge de forma tudo menos adequada, já que basta consultar um qualquer dicionário para entendermos que importunar significa “incomodar alguém de forma persistente” e isso é tudo menos um sinónimo de “puritanismo”, mas sim da capacidade para entender que a ação de A ou B é errada.
Marcos, o que tens a dizer?
Marcos Melo (MM): Antes de mais, é de referir que, entretanto, na sequência da polémica carta — que originou duras críticas por parte dos apoiantes do movimento #MeToo —, Catherine Deneuve publicou, em nome próprio, no jornal Libération, uma outra em que dirige um pedido de desculpas às vítimas de assédio/abuso sexual.
“Saúdo cordialmente todas as vítimas desses actos hediondos que se possam ter sentido ofendidas pela carta que apareceu no jornal Le Monde. É a elas, e apenas elas, que ofereço as minhas desculpas”, escreveu a atriz francesa.
Estará Catherine Deneuve a sacudir a água do capote?
A primeira carta acusa o movimento #MeToo de puritanismo e de agir como uma caça-às-bruxas, o que, no meu entender, poderá ser interpretado como uma legitimação dos tais “actos hediondos” (alegadamente) perpetrados pelos poderosos de Hollywood. É certo que há que distinguir entre violação e sedução. Mas se as mulheres que têm metido a boca no trombone, as The Silence Breakers — como a revista Time as nomeou, elegendo-as como a Person of the Year 2017 —, se sentiram assediadas/abusadas, por que motivo colocamos em causa a veracidade das suas queixas? Aguardemos, pois, pelas cenas dos próximos capítulos, isto é, os trâmites da Justiça. Ou estaremos perante um beco sem saída?
Na sequência deste enredo, é incontornável mencionar o discurso de Oprah Winfrey na gala deste ano dos Golden Globes. “O tempo deles chegou ao fim”, repetiu a apresentadora de televisão e actriz, referindo-se aos homens desmascarados, o que lhe valeu uma ovação de pé da plateia.
Maria, estaremos perante uma guerra de sexos ou uma guerra de feministas?
MMR: Tomei a liberdade de pesquisar “puritanismo no feminismo” no Google e encontrei uma frase bastante peculiar num blogue e passo a citar o autor (que assina como O. Braga): “O feminismo actual é um feminismo puritano e anti-masculino que vê no homem um impedimento ontológico para a “igualdade entre géneros” que acrescenta ainda: “(…) a única solução que o feminismo encontra para o problema é exigindo do homem um constante sentimento de culpa em relação à sua própria ontologia”. Se quisermos ser simplistas, podemos dizer que a ontologia é a ciência do ser, se pretendermos ir mais longe, chegamos à conclusão de que “é a parte da metafísica que trata da natureza, realidade e existência dos entes”.
O autor e mais 234532 pessoas por este mundo fora, que associam determinados atos a frases que se assemelham a algo como “coitadinhos dos homens, não podem combater a sua natureza”, querem afirmar que um ser humano, por ser do sexo masculino, não sabe controlar os seus “instintos” ou, por outro lado, enganam-se no tal raciocínio complexo e acabam por demonstrar que alguns seres do sexo masculino são retrógrados ao ponto de usarem a “ontologia” como desculpa permanente e esfarrapada para assediarem (e não seduzirem) uma mulher?
É óbvio que o feminismo entra (e bem) nesta equação, e não como “feminazismo” ou outra palavra estranha e errada, mas sim porque: há mulheres que ainda não se libertaram das convenções do patriarcado, muitas das vezes, porque o mesmo existe em quase todas as esferas da sua vida e, noutras, porque não têm coragem suficiente para o fazer e os homens acreditam que ser líder e ter autoridade ou estar numa posição superior à de uma mulher, significa que poder decidir se a mesma aceita ou não “a sua liberdade de importunar” e, claro, por outro lado, o feminismo diz respeito à igualdade de direitos entre mulheres e homens, e se a opressão e a violência estão a atingir as mulheres, há que equilibrar a balança mostrando que o equilíbrio tem de ser restabelecido para que obtenham a mesma “harmonia social” que os homens, por assim dizer.
Marcos, tal como explicaste, o movimento #MeToo tem como objetivo difundir a ideia de que o assédio sexual e a violação são recorrentes, mas como pôde Deneuve opor-se a esta revolta coletiva e, dias depois, declarar que, na carta, “nada de bom existe sobre o assédio, senão não a teria assinado”?
“Na verdade, na imprensa e nas redes sociais, tem existido uma campanha de denúncias públicas e a acusação de indivíduos que, sem terem a oportunidade de responder e de se defender, foram colocados exatamente no mesmo plano que os infratores sexuais”
não achas que só através da leitura deste excerto, percebemos que Deneuve e as outras 99 signatárias estão terrivelmente equivocadas e, das duas uma: ou não sabem aquilo que escreveram ou estão a tentar fugir com o rabo à seringa…!?
MM: Entretanto, mais uma voz se juntou ao clã encabeçado por Deneuve. Em entrevista à revista Paris Match, Brigitte Bardot acusa as (alegadas) vítimas de assédio/abuso de hipocrisia. “Muitas actrizes envolvem-se com os produtores, para conseguirem os papéis. Mais tarde, quando contam a história, dizem que foram assediadas”, afirmou a actriz francesa. São insinuações graves, que colocam em causa a credibilidade das alegações das queixosas. Portanto, parece-me que o que começou por ser um movimento que opõe mulheres e homens começa, agora, a revelar soslaios de uma guerra entre feministas, em que de um lado da barricada encontramos as americanas (puritanas, aos olhos das francesas) e do outro as francesas (libertinas, aos olhos das americanas). O movimento #MeToo (também conhecido por Time’s Up) continuará na ordem do dia. Aguardemos pela 90.ª cerimónia dos Oscars, que terá lugar no dia 4 de Março. Se os Golden Globes foram o que foram, imagine-se os Oscars…
MMR: Até agora, o movimento Time’s Up baseou-se essencialmente nestas ações: a criação de um fundo de defesa legal de 13 milhões de dólares, administrado pelo National Women’s Law Center, para apoiar mulheres que viveram situações de assédio sexual; a exigência de uma legislação que puna as empresas que toleram o assédio persistente; o movimento para a paridade de géneros no meio artístico e, por fim, a utilização de roupa preta por quem participou na 75ª cerimónia dos Golden Globes. Creio que, daqui a umas semanas, surgirá uma nova reivindicação, desta vez direcionada para os Oscars de 4 de março. Para além disto, o #MeToo já chegou longe ao ponto das aclamadas Silence Breakers, ou seja, as mulheres que se opuseram publicamente ao abuso sexual, terem sido eleitas como personalidade do ano da revista Time.
Marcos, já ouviste falar da carta redigida por atrizes de Hollywood, onde encontramos: “A luta que as mulheres desenvolvem para entrar e estar no topo das fileiras deve ser ouvida e reconhecida em locais de trabalho dominados pelos homens: acabou o tempo desse monopólio impenetrável”? Porque a única coisa que tenho a acrescentar é esta: das sufragistas do Reino Unido à obtenção do direito de voto com a Décima Nona Emenda, nos EUA, passando pela visão inovadora de Beauvoir até à terceira onda do feminismo, há que fazer jus a estas conquistas e assumir que o tempo dos opressores acabou – e há muito.
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AUTORIA
Diz que é o cota da ESCS MAGAZINE. Testemunhou o nascimento do projeto, foi redator na Opinião e, hoje, imagine-se, é editor dessa mesma secção. Recuando no tempo... Diz que chegou à ESCS em 2002, para se licenciar, quatro anos mais tarde, em Audiovisual e Multimédia. Diz que trabalha há nove no Gabinete de Comunicação da ESCS – também é o cota lá do sítio. Diz que também por lá deu uma perninha como professor. Pelo caminho, colecionou duas pós-graduações: uma em Comunicação Audiovisual e Multimédia (2008) e outra em Relações Públicas Estratégicas (2012). Basicamente, vive (n)a ESCS. Por isso, assume-se orgulhosamente escsiano (até ser cota).