Opinião

A gente se acostuma, mas não devia.

Habituamo-nos a deitar tarde e acordar cedo porque ficou muita coisa para fazer durante o dia. E assim o tempo que deveria ser de reparação passa a ser apenas um enrustido pedido de desculpas a tudo aquilo que ficou à espera de ser tratado.

A gente se acostuma, mas não devia.

A gente se acostuma a aceitar que já se acorda atrasado de um sono mal dormido. A ter de engolir um café à pressa porque se perder o transporte vai chegar tarde. E quando o apanha, a deixar a mente absorta, mas alerta, enquanto não chega a paragem certa.

Ou a amaldiçoar-se por ter saído 15 minutos mais tarde, quando o contrário teria evitado ficar numa fila de trânsito, perder a vaga para o estacionamento e começar mais um dia a dizer que o dia já começou mal.

A gente se acostuma, mas não devia.

A perguntar como vai sem realmente se importar como se vai. E a responder tudo bem mesmo quando não está. A considerar esta pergunta simples e franca como um cumprimento e não um autêntico interesse. Como se, ao mentir piedosamente, não estivéssemos realmente interessados nem no outro nem na resposta que este pode ouvir de nós. A sermos ignorados quando precisávamos de ser vistos.

A gente se acostuma a ver o trabalho como uma atividade que paga as contas. A nos questionarmos se vivemos para trabalhar ou se trabalhamos para viver. A repetir esta cantilena a cada momento de crise de talento e a encontrar as mesmas respostas como se pudesse haver um argumento diferente em algo que nós próprios não fazemos por onde alterar.

A gente se acostuma a ter o telemóvel entre as mãos e passar milissegundos à procura de distração, mas quando este tempo se torna minutos descobrimos que só queríamos aumentar a dose de sedativo mental no vazio do movimento mecânico do arrastar do dedo no ecrã. E depois, mesmo sabendo que não deveríamos ter feito isso, culpamo-nos por tê-lo feito.

A gente se acostuma, mas não devia.

A calar e comer, a não levantar a voz e ter uma opinião crítica. E não tendo uma posição, deixamo-nos levar pelo que outros pensam e, com isso, parte de nós fica à mercê da manipulação alheia. Perdemos a voz quando não nos posicionamos e cedemos o lugar a quem fala mais alto mesmo sem saber o que fala.

Acostumamo-nos a ligar a televisão e assistir à guerra. A achar que é tudo muito distante da nossa realidade pacífica. A achar que já é demasiado problemático o quotidiano de dormir pouco, comer à pressa, fazer transbordos e ocupar-se com o trabalho, os estudos, os amigos, os filhos. Nada disso entra nas estatísticas e, no final do dia, só a nossa consciência pode nos cobrar. Mas ela já está cansada e sempre há o compassivo alívio de alguém estar a fazer algo por nós – qualquer coisa – que deveríamos também fazer: preocuparmo-nos autenticamente com o outro.

O impulso para a ação custa. E na inércia do automatismo da praxe vamos perdendo a nossa humanidade.

A gente se acostuma, mas não devia.

A olhar para o lado ao ver o sofrimento alheio. A esquecer que podíamos ser nós ali, a precisar de gestos de gentileza, palavras de encorajamento, de um elogio pelo esforço por um bom trabalho, pelo reconhecimento dessa concretização.

Acostumamos a não ligar para os pais, os avós, os tios. A não dizer amo-te mesmo quando não se está apaixonado. Habituamo-nos a esquecer que se estamos aqui é porque alguém nos deu chão, protegeu, acreditou e deu asas para voarmos e esta pessoa deve também receber a nossa gratidão pelas nossas pequenas e grandes vitórias. É esta cadeia de esperança na beleza da bondade e do amor que faz valer a pena o caos que também faz parte deste mundo.

A gente se acostuma, mas não devia.

A evitar o sofrimento, a se preservar e a manter uma atitude defensiva como modo de vida. E ao nos preservarmos do que é natural da vida, deixamos de vivê-la. E a vida, de tão acostumada que está de não ser vivida, perde-se de si.

Passar incólume pela vida é ignorar a nossa essência humana e a infinitude de sentimentos que cada experiência pode nos proporcionar.

Não se encontra a paz, evitando as turbulências da vida. É da mistura de busca, realização, fracasso, resiliência, sucessos, deceções e tenacidade que a nossa história se forma, reforma, transforma e transcende.

A gente devia se acostumar mais a isso.

Fonte da capa: Vandal

Artigo revisto por Miguel Tomás

AUTORIA

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Colecionadora (in)voluntária de diversas experiências de vida, interessada por tudo o que lhe desperte a sede de conhecimento: da literatura ao cinema, da filosofia à psicologia e de como ter uma refeição decente pronta em 10 minutos. Aprendiz no ofício da construção de narrativas, crê que somos o herói da nossa própria história. Promete que quando for crescida terá um perfil ativo nas redes sociais.