A magia de Fernando Pessoa
Li O Livro do Desassossego pela primeira vez aos 15 anos, quase no final do meu décimo ano, escondida no canto da biblioteca do meu liceu. Eu estava envergonhada, assustada e deslumbrada por finalmente entrar no mundo do icónico homem das mil personalidades. A minha professora de Literatura franziu a sobrancelha, perguntando “não será cedo demais para te debruçares sobre essa leitura tão profunda?”, tendo eu respondido que não e, para os meus botões, pensei: se for para me afogar, que seja em águas que valham a pena. Profundas, isto é.
Fernando Pessoa tem como heterónimos principais Alberto Caeiro – “O Mestre” -, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Todos com as suas caraterísticas, todos com os seus dilemas, maneiras de ver a vida (e de viver) e todos com algo que o ortónimo tinha ou ambicionava ter.
O Livro do Desassossego pertence a Bernardo Soares – um homem que foi delegado para segundo plano: um semi-heterónimo. É um “simples ajudante de guarda-livros” e conheceu Fernando Pessoa numa casa de pasto que ambos frequentavam. Nessa mesma casa de pasto, Bernardo partilhou com Fernando o seu íntimo, escandaloso e confuso livro, num estado fragmentado – tal como o seu autor. Mais tarde, este livro fragmentado e desassossegado foi considerado uma das mais importantes obras da ficção portuguesa, mas nem Pessoa nem Soares o sabiam nesse dia. Bernardo Soares é, não sendo, o próprio Fernando Pessoa. Tem todas as suas caraterísticas, exceto o raciocínio e a obsessão pela lógica que o ortónimo possui e não esconde.
É esta a magia de Fernando Pessoa. A capacidade de se desconstruir, de se reinventar em múltiplas personalidades diferentes e, para além disso, de fazer delas suas amigas. De fazer destas personagens que cria suas compinchas, suas companheiras, suas colegas de café. De passar para o papel diálogos que teve consigo mesmo e de ensinar a si próprio lições que finge terem sido ensinadas por outrem.
Li O Livro do Desassossego pela primeira vez aos 15 anos, quase no final do meu décimo ano, escondida no canto da biblioteca do meu liceu. Talvez não o tenha percebido na sua totalidade na altura; talvez, como me disse a minha professora, tenha sido cedo demais. Hoje em dia já li mais obras de Pessoa: já li poemas, já li cartas, já li excertos. Já li Alberto Caeiro, Reis e Álvaro de Campos também. Li o que me incumbiam na escola e li também por curiosidade.
Foi com essa mesma curiosidade que hoje fui requisitar, novamente, O Livro do Desassossego. Vou lê-lo de novo. Talvez ainda seja cedo demais. Talvez não haja uma altura certa para mergulharmos no mar de pessoas que era Fernando. Talvez, como ele, tenhamos de nos reinventar cada vez que o lemos. Vou ler de novo o diário de Bernardo Soares. Vamos ver se vai ser tão mágico como foi da primeira vez ou se, com o tempo, a magia se confunde nas memórias e faz o pequeno parecer grande e o entusiasmo parecer paixão.
Artigo revisto por Ana Rita Sebastião