Música

Música como linguagem universal: será mesmo?

A ideia de que a música é uma linguagem universal está profundamente enraizada na nossa cultura. Frases como “a música é uma linguagem que todos entendem” ou “onde as palavras falham, a música fala” são repetidas frequentemente em contextos que exaltam a sua capacidade de atravessar fronteiras, unir povos e transmitir emoções universais. Mas será que esta conceção resiste a uma análise mais crítica? Será que todas as pessoas, em qualquer parte do mundo, percecionam a música da mesma forma? Ou será esta ideia uma romantização excessiva de um fenómeno culturalmente moldado e profundamente contextual?

O apelo da universalidade

À primeira vista, há bons motivos para considerar a música uma linguagem universal. Diversos estudos científicos apontam para a existência de reações semelhantes à música entre seres humanos de diferentes culturas. Bebés respondem ao ritmo e à melodia mesmo antes de adquirirem linguagem verbal, e algumas emoções básicas como alegria ou tristeza parecem ser reconhecíveis em músicas de culturas distantes. Um exemplo frequentemente citado é o estudo de 2016 da Universidade de Harvard, que mostrou como os ouvintes ocidentais conseguem, com alguma precisão, identificar emoções (nomeadamente a felicidade e a tristeza) em músicas da cultura Himba, da Namíbia – e vice-versa.

Além disso, a música está presente em praticamente todas as culturas humanas conhecidas. Desde rituais religiosos a canções de embalar, da música de trabalho aos cânticos de guerra, a humanidade recorre à música para comunicar, consolar, motivar e celebrar. Essa ubiquidade parece sugerir que há algo de fundamental na música — algo que transcende palavras, línguas e geografias.

Diferenças culturais e perceções musicais

Contudo, esta visão universalista tende a ignorar a complexidade das experiências musicais e o peso da cultura na forma como a música é criada, interpretada e sentida. O que é considerado música numa cultura pode ser percecionado como ruído noutra. Os sistemas de afinação, os modos, os ritmos e até os instrumentos variam significativamente entre tradições musicais.

Ritmos e Tradições < Virada da Consciência

Fonte: Virada da Consciência

Tomemos como exemplo o sistema tonal ocidental, com a sua escala temperada e estrutura harmónica baseada em acordes maiores e menores. Este sistema, embora dominante a nível global por via da colonização e da indústria musical, não é universal. Em várias culturas asiáticas, africanas ou do Médio Oriente, a música desenvolve-se em escalas microtonais que escapam à lógica ocidental. Ouvir um maqam árabe ou uma raga indiana pode soar, a ouvidos ocidentais, “estranho”, “desafinado” ou “incompreensível”. Da mesma forma, um indígena amazónico poderá não reconhecer as intenções emocionais por trás de uma sinfonia de Beethoven.

Além disso, as próprias emoções expressas pela música são interpretadas culturalmente. Por exemplo, o modo menor na música ocidental é frequentemente associado à tristeza, mas noutras culturas pode sugerir introspeção, espiritualidade ou até celebração. Isto demonstra que a ligação entre sons e emoções não é tão direta como por vezes se pensa: é mediada por hábitos de escuta, convenções culturais e experiências de vida.

Música como linguagem?

Outra questão reside na analogia entre música e linguagem. É comum dizer-se que a música é “uma linguagem”, mas até que ponto esta metáfora é válida?

A linguagem verbal é um sistema simbólico com regras gramaticais e semânticas, com o objetivo claro de transmitir significados precisos e partilháveis. A música é um sistema expressivo, sim, mas ambíguo por natureza. Uma mesma melodia pode evocar diferentes sentimentos em diferentes ouvintes, ou mesmo em diferentes momentos da vida da mesma pessoa. A música não “diz” algo com a clareza de uma frase verbal; sugere, insinua, convida à interpretação. Não há uma gramática universal da música, nem um vocabulário partilhado que permita traduções inequívocas entre contextos culturais.

Assim, talvez seja mais adequado pensar a música não como uma “linguagem” no sentido estrito, mas como uma forma de comunicação. E aqui sim, podemos reconhecer o seu poder singular: o de criar pontes sensoriais e emocionais entre indivíduos, mesmo quando não partilham uma língua, uma história ou um contexto.

Fonte: Giro 0800

Música como ferramenta de ligação

Apesar das diferenças, a música tem sido, indiscutivelmente, um meio poderoso de ligação entre culturas. Através da globalização e da tecnologia, géneros musicais têm atravessado fronteiras a uma velocidade impressionante: o k-pop coreano, o reggaeton latino, o afro beats nigeriano ou o fado português têm conquistado públicos globais, muitas vezes sem que os ouvintes compreendam as letras ou conheçam o contexto cultural de origem. Nestes casos, o que se transmite não é um significado literal, mas uma energia, uma estética, um ritmo que ressoa com algo de humano.

A música também desempenha um papel relevante em contextos de crise humanitária, ativismo social ou celebração intercultural. Em situações de catástrofe ou de conflito, canções de solidariedade podem mobilizar o apoio internacional. Em encontros entre povos, a partilha musical tem sido muitas vezes o primeiro gesto de aproximação e respeito mútuo.

A música pode não ser uma linguagem universal no sentido linguístico ou semântico, mas é certamente uma das formas mais eficazes de comunicação humana além das palavras. A sua aparente universalidade reside não tanto na uniformidade da sua forma ou interpretação, mas na sua capacidade de nos emocionar, de nos fazer sentir acompanhados, de criar pontes onde parecia haver muros.

Ao reconhecermos as especificidades culturais da música, em vez de as ignorarmos em nome de uma ideia simplista de universalidade, tornamo-nos ouvintes mais atentos, mais humildes e mais abertos. E é talvez aí que reside o verdadeiro poder universal da música: não na ilusão de que todos sentimos o mesmo, mas na possibilidade de nos escutarmos uns aos outros, mesmo quando somos diferentes.

Fonte da Capa: NPR

Artigo revisto por Érica Gregório

AUTORIA

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Com 18 anos e vinda do Alentejo, a Marta está no segundo ano da licenciatura em Jornalismo na ESCS. Sempre de olhar curioso e mente inquieta, encontrou na ESCS Magazine um espaço onde pode explorar e partilhar o que mais a inspira. Começou como redatora nas secções de Cinema e Televisão e Música, e foi aí que descobriu o prazer de escrever sobre o que se vê e se ouve — e tudo o que isso pode provocar. Agora, como Editora de Artes Visuais e Performativas, continua a desafiar-se, procurando novas formas de olhar e comunicar o mundo artístico. Escrever é mais do que informar — é traduzir emoções.