Não tão querido Pai Natal
Querido Pai Natal,
Gostaria de te trazer uma lista de coisas que queria, seja um boneco, viagens, ou qualquer desejo consumista momentâneo e prontamente substituído pelo seguinte. Não o faço, pois olho para o mundo e percebo o quão longe estamos do que é o mínimo aceitável, como a História é uma repetição em si mesma. Como o ser humano se reproduz sem evoluir, num ciclo comparável à dilatação e contração do abdómen quando respiramos, ou do universo, conforme preferirem. A propensão à paz ou à destruição é contruída num conjunto de pequenos ciclos que se dilatam e se influenciam e propagam até atingir o seu expoente, após os quais se contraem e vêm os ciclos contrários, a paz estabelecida, esperança de um mundo sem guerra, sem fome, e a fita do filme volta ao início.
Não sei se fique triste, se aceite a imutabilidade do mundo, se me culpe por não contribuir ativamente para uma utópica mudança, se o negue e apenas veja uma versão bonita deste pântano que é o nosso Universo. Não sei se viva feliz na falsa ignorância, agradecendo o privilégio que me foi concedido, a felicidade que me foi permitida usufruir, tentando ao máximo aproveitar o que me foi dado em vez de questionar o porquê de tantos não o terem também.
A verdade é que sou egoísta, na medida em que a aceitação do mundo e da humanidade como algo imutável permite-me viver sem remorsos, como se aceitar esta condição me libertasse de a tentar melhorar. Infelizmente, sou assim, prefiro aceitar a minha sorte e vivê-la do que tentar mudar as sortes de quem nunca as ousou ter.
Claro que tento ao máximo mudar pelo exemplo – “faz aos outros o aquilo que gostavas que fizessem por ti” – mas estes outros são tão privilegiados quanto eu, e, mesmo que o teu impacto seja positivo no mundo, mesmo que a pegada subatómica que vais deixar enquanto alguém se lembrar de ti seja algo que faz valer a pena, até que ponto isso realmente acontece? Se tu não fizeste o mínimo por todos os outros que mais precisavam?
O cérebro também se expande e contrai. Neste momento, com as noticias de mais atentados, da continuidade incessante da guerra na Síria, a consciencialização do meu mundo está negra e os ciclos de pessimismo propagam-se. Mas, e infelizmente ou felizmente, o caráter biológico deste magnífico e complexo sistema irá receber estímulos e reproduzi-los em sentido contrário, forçando uma negação dessa realidade, como se a colocasse em lume brando. Voltarão brevemente preocupações egocêntricas, genuínas, do que me rodeia, e o mundo volta a ter a cor certa, e o privilégio da minha existência estará inequivocamente aos meus pés, comigo pronto a agarrá-lo.
Querido Pai Natal,
Obrigado, mas este ano não obrigado.
“O João Garrido escreve ao abrigo do novo acordo ortográfico”