Grande Entrevista e Reportagem

«O Dino d’Santiago é um escudo para as várias coisas que quis dizer, mas que na altura não ouviram»

Mais do que uma entrevista, este é um retrato pintado na primeira pessoa pelo homem que encontrou na empatia a sua filosofia de vida, que tomou a decisão de investir na “geração d’ouro” e que, mesmo não se revendo no hino, ainda chora quando o ouve.

Mais de 2800 quilómetros separam a cidade de Quarteira, no Algarve, da ilha de Santiago, em Cabo Verde, mas unem a música e o coração de Dino d’Santiago. À ilha cabo-verdiana, Claudino Pereira deve-lhe o nome artístico. Apesar de já ter nascido em Portugal, foi em Santiago que o cantor sentiu que “pertencia” e onde encontrou aquela que seria a base e alma da sua música: as suas raízes e os ritmos de Cabo Verde. Como manda a tradição cabo-verdiana, «ou se é filho de alguém ou se é de algum lugar». Nascia assim Dino d’Santiago.

A infância foi passada em Quarteira. Uma infância que foi um inferno, mas que na altura mais parecia um paraíso. «Sinto que fui feliz no inferno, porque enquanto lá vivi achei que estava no paraíso», confessa.  Do início dos inícios, que é a infância, o músico revela que apenas levou para a sua vida o melhor. «Eu congelei as memórias negativas e só me foquei nas boas. Foi o meu instinto de sobrevivência. Essa é a realidade», acredita. Um instinto que lhe permitiu ser capaz de ignorar a fome e a miséria, e focar-se no essencial: «Brinquei muito.»

Tempos difíceis, que, no entanto, em nada definem o homem em que Dino se tornou, mas que explicam muito sobre si próprio, como, por exemplo, o porquê de durante muito tempo não ter sido capaz de dizer não ou, até mesmo, o porquê de acumular. «Durante muito tempo da minha vida eu fazia o que os outros queriam que eu fizesse porque queria ser aceite. Não sabia dizer que não… Ao longo dos anos, eu acumulei muito com o medo que voltasse a faltar. A terapia está agora a trabalhar essas questões e começo a dar. Já não sou aquela criança… Já não me vai faltar mais. Hoje o Dino ainda está a trabalhar os vestígios daquela criança», conta.

«Tudo o que eu hoje sou eu aprendi até ao secundário»

Na escola, o ainda jovem Claudino Pereira começou a perceber que poderia sonhar. Com muito carinho e estima recorda aqueles que considera terem sido grandes pilares da sua vida: «Foi a professora Carla Candeias que me ensinou que quando os Estados Unidos espirram o mundo fica constipado. Foi a minha professora Brígida Coelho que me ensinou a falar francês e, por causa disso, sei até hoje. Foi a minha professora Isilda de História da Arte que, sabendo que eu era fã de Salvador Dalí, Picasso, (René) Magritte, me levou a Figueres para conhecer o museu do Dalí. Foi a minha professora Stella de Artes Visuais que sempre me disse que eu era o melhor e fez-me sentir algo que nunca tinha sentido… que era realmente o melhor. Estas pessoas fizeram sempre questão de que eu me nutrisse de tudo o que se passava à minha volta.»

A sua vontade de garantir também isto a outras crianças tornou a educação uma das suas bandeiras e levou-o a abraçar o projeto SIC Sucesso, Inclusão e Cidadania na escola D. Dinis, lugar onde descobriu que as artes passariam a fazer parte da sua vida. «Quando me dizem que a minha escola é a segunda pior do país no abandono e insucesso escolar… se eu não fizer alguma coisa para que me serve ser Dino d’Santiago?», responde.

«Mais do que um refúgio, a música foi um agregador»

Dino d’Santiago ao lado de Naomi Guerreiro, Inês Oliveira e Miguel Jacinto.
Fonte: Sou Quarteira (https://www.souquarteira.com/festival-2019)

É impossível falar de, e com, Dino d’Santiago sem falar de música. O cantor conta que vê a música também como uma extensão de si próprio. «Se eu morresse a minha música diria tudo o que eu sou. Tudo o que eu penso, tudo o que eu sinto, onde falhei enquanto filho, onde cresci enquanto pai, onde falhei enquanto marido. Tudo. Tudo isto eu partilho na música», assume. A conversa flui e Dino acaba por confessar a importância que a música tem para si: «é o único sítio onde eu sinto isto, onde eu partilho a minha vulnerabilidade sem qualquer receio de um retorno menos bom. O retorno tem sido sempre bom. Quando partilho a minha vulnerabilidade, a minha história, sinto que consigo tocar mais as pessoas. Sinceramente, acho que nem o conseguiria fazer de outra forma…»

Ao longo da vida do cantor, o poder agregador da música esteve sempre presente. «Conheci muita gente com e pela música», reconhece. Foi esse mesmo poder que quis trazer à cidade que o viu nascer, em conjunto com Miguel Jacinto, Naomi Guerreiro e Inês Oliveira, todos filhos da terra, «para mostrar que Quarteira é muito mais do que uma zona balnear.» 

Continua, «o movimento surgiu com essa intenção: conseguir fazer um festival em que reuníssemos várias vozes que fazem a diferença nas suas comunidades para que trouxessem a sua inspiração a Quarteira.» Aquilo que tinha sido pensado inicialmente como um festival, tornou-se num movimento cultural e social, que à música deve a sua génese e o seu próprio nome. «A ideia, a origem do nome do projeto veio de uma canção que eu escrevi dedicada a Quarteira, que fala precisamente das minhas memórias. Todos os bocados de letra são história», recorda.

Há música no bairro

Da vida no bairro, Dino d’Santiago parece retirar aquela que é a essência dos primeiros versos da sua música Esquinas com o rapper Slow J:

Nas curvas do bairro / Aqui toda a gente sente / Terra não é só lugar onde se nasceu / É também o chão que trazemos na mente / Aqui toda gente é parente

Em 2022, o projeto Sou Quarteira rumou ao Bairro da Abelheira com uma edição muito especial intitulada Ela por Ela, que marcou a diferença pelo seu cartaz exclusivamente feminino. «Foi uma bandeira de combate à ausência de mulheres nos grandes cartazes a nível europeu e norte-americano. Somente 23% têm representatividade nestes grandes palcos, de acordo com a UNESCO, e, normalmente, recebem menos que os homens… mesmo que sejam cabeças de cartaz», sublinha. 

Para Dino d’Santiago, esta foi certamente uma edição ainda mais especial, porque teve lugar no Bairro da Abelheira, para onde foi depois da demolição do antigo Bairro dos Pescadores. Quando questionado sobre o sentimento de trazer algo assim a um dos sítios que o viu crescer, o sorriso de Dino revela-se e a resposta surge: «Foi incrível…» O cantor não esconde o orgulho no feito: «A ideia era este ser o primeiro momento num bairro social em que se realmente se leva dignidade cultural e não uma esmola. O primeiro momento em que se leva um palco… em que se levam pessoas a esse palco. Pessoas que poderiam estar num (NOS) Alive ou num MEO Sudoeste e, que com o seu concerto, sem negociar caché, abrissem aquele lugar. Ainda há um grande preconceito com o ir ao bairro. Há pessoas que vivem lá há 30 anos (Quarteira) e nunca foram ao bairro… Mas também é Quarteira. Quem lá vive também faz parte daquele lugar. Não são animais. Foi muito isto. Humanizar o bairro.»

“Isto é para o Lucas

Dino d’Santiago com o filho Lucas.
Fonte: Instagram

A conversa já vai longa e surge um nome: Lucas. Os olhos brilham. 

Em 2021, Dino foi pai pela primeira vez. Torna-se inevitável perguntar se este já era um sonho antigo. A resposta não poderia ser mais clara: «Sim. O meu filho foi uma armadilha, mas foi a melhor armadilha em que alguma vez caí… Eu fui o último a ter um filho na minha família, por isso já havia aquelas piadinhas do género “Dino, vais ficar para tio”. Essa pressão familiar levou-me a tomar decisões que hoje me levaram ao Lucas… e eu repetiria tudo porque hoje eu conheço o Lucas. Tudo o que eu faço ou digo agora é para o Lucas. Isto é para o Lucas.»

Sobre si, quer que o seu filho «saiba que o pai dele não é perfeito, mesmo que tente… e tentou… que saiba que não é o super-homem, ainda que na pela de Dino d’Santiago esteja mais perto disso do que em Claudino Pereira… que o pai dele é o Claudino Pereira e que o Dino d’Santiago não é o pai dele, mas sim uma pessoa em que, se ele quiser, se pode inspirar… que, para mim (Claudino Pereira), o Dino d’Santiago é um escudo para as várias coisas que quis dizer, mas na altura não ouviram… quando me tornei Dino d’Santiago passaram a ouvir.»

«Preto, estás na tua terra»

Fonte: Instagram

Em 2022, Dino d’Santiago atuou nas comemorações do 25 de Abril no Palácio de São Bento e em Grândola, no entanto, a sua cabeça ainda estava naquele dia 25 de julho de 2020 – dia em que Bruno Candé foi assassinado à luz do dia, vítima de racismo, dias depois de ter ouvido pela última vez: “preto, vai para a tua terra.

«Acordei no dia 24 com a cabeça na morte do Bruno Candé. Queria que aquele momento fosse de homenagem ao legado dele… aos seus filhos. Comecei logo a pensar no que poderia fazer e depois comecei a pensar no Lucas… comecei a pensar que poderia ser eu ali. Surgiu assim a ideia do “preto, estás na tua terra.  Tu, sabendo que estás na tua terra, sabes que tens direitos. Quanto mais sentes que o teu corpo também pertence a este lugar, mais acesso à informação que te protege vais ter. O momento foi marcante por isso… foi chegar a Grândola e dizer “preto, estás na tua terra.” De repente pretos e brancos, todos queriam a t-shirt e eu decidi: não. Isto é um manifesto. Fica aqui. Não é um merchandising. Isto é uma mensagem de legado que quero deixar para o que o meu filho também sinta que pertence a este lugar. Foi isto… uma mensagem de amor ao Lucas e aos filhos do Bruno», conta.

«Deixei de conseguir ver o hino da mesma forma…»

A polémica do hino não escapou a esta conversa. Surgiu por acaso. Dino confessa que já não se sente representado pel’A Portuguesa, mas que ainda assim chora quando a ouve: «Nunca mais voltei a olhar para o hino da mesma forma depois de ter tido conhecimento histórico sobre o que foi a colonização. Uma colonização extremamente bárbara, que é muito romantizada porque os portugueses foram dos que mais se misturaram, mas no início dessa mistura houve muitas violações… muitos filhos que não foram separados das famílias para não haver revoltas. Precisamente para não haver força. Quando eu penso que Portugal compactuou com isso o meu lado português sangra porque eu sou muito mais português do que cabo-verdiano. Eu sou isto. Eu senti-me herói do mar. Eu senti-me descobridor. Nos meus livros de História o que via era uma indigena sorridente e as naus a chegarem. Eu não via ali nada de mal. Só tenho pena de o véu me ter caído tão tarde. Quem me dera ter tido a oportunidade de debater sobre isto com os meus professores quando era mais novo… Quando há um jogo eu ainda choro a ouvir o hino… mas não é pelas razões certas.»

A decisão de uma vida

Já bem perto do final da entrevista, o cantor revela que tomou uma decisão que acredita ter mudado a sua vida para sempre, ainda mais do que a música. «Não vou mais investir em tentar mudar a mentalidade de pessoas que já se formataram. Essa minha decisão de investir na chamada “geração d’ouro” (os mais jovens) mudou a minha vida para sempre. Foi isso que mudou a minha vida. Nem foi a minha música. Foi essa decisão. É isso que me faz viver», conclui.

Esta entrevista foi também fruto disso mesmo. Dessa decisão. Dessa empatia. Desse investimento. Ao longo da conversa, Dino d’Santiago confessou várias vezes que “isto é para o Lucas”, mas, no início do mês de junho, passou certamente também a ser para a sua filha, que fez do cantor pai pela segunda vez.

Fonte da capa: Expresso

Artigo revisto por Inês Gomes

AUTORIA

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Durante muito tempo quando lhe perguntavam “o que queres ser quando fores grande?”, a resposta nunca era a mesma. O gosto pela escrita esteve sempre muito presente ao longo da sua vida, mas foi só no secundário que decidiu que queria seguir jornalismo. Olhando agora para trás, esta era uma decisão bastante óbvia, tendo em conta a sua curiosidade, o seu gosto pela comunicação e o seu fascínio pelo mundo da televisão. O sonho de ser jornalista levou-o a rumar a Lisboa para entrar naquela que era a sua faculdade de sonho, a ESCS. Para Hugo, a ESCS Magazine é um espaço de aprendizagem, onde a escrita e a criatividade ganham asas.