O feminismo será necessário até deixar de o ser
Artigo por Inês Sousa Martins
Sê tu mesma.
Mas não assim.
Não vestida assim. Que estás a provocar os homens.
E, com esse decote, as tuas mamocas ainda apanham frio.
Provocas os homens e depois és violada, o que é bem feita… Andas a pedi-las!
E se depois engravidares e quiseres abortar, espero que te tirem os ovários.
Sou mulher.
E posso ser feminista. Mas não demasiado.
Posso ser feminista. Mas não me posso assumir como tal, nem sequer dizê-lo em voz alta.
Posso ser feminista. Mas não posso ser uma feminista radical.
Posso ser feminista. Mas não posso ser daquelas que andam a enxovalhar os homens nas redes sociais.
Posso ser feminista. Mas…
Mas o quê?
O feminismo continua a ser necessário.
Porque o feminismo nunca quis ser o oposto do machismo.
Porque o feminismo prega a igualdade de género e uma sociedade onde os homens e as mulheres têm os mesmos direitos. Tudo o resto não é feminismo.
Porque não existe feminismo radical. Ou é ou não é.
Porque enxovalhar os homens nas redes sociais, ou em lado algum, não é feminismo.
Não é.
Não é.
Não é.
Não.
A mim, toda a gente me diz o que fazer.
Toda a gente tem o direito de achar o que eu devo fazer. Menos eu própria.
Toda a gente tem algo a dizer em relação ao meu corpo. Menos eu própria.
Toda a gente tem o direito de opinar sobre os meus direitos. Menos eu própria.
Em tempos recentes, tenho-me vindo a aperceber de que gosto ainda mais de jornais em papel do que pensava. Talvez por não virem com caixa de comentários. Passo os olhos pelas notícias online e deparo-me com um “Führer Ventura” (será paródia?), defendendo, com unhas e dentes, o professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa que comparou o feminismo ao nazismo e que se referiu à violência doméstica como “disciplina doméstica“.
Porque os idiotas… bem, esses sempre existiram. Sempre. A Internet apenas lhes concedeu um espaço mais amplo e mais livre para escreverem, de forma pública e que alcance muitas outras pessoas, sobre o que bem lhes apetece.
E muito se escreve sobre o feminismo. Escreve-se bem e, principalmente, escreve-se mal.
(É tão fácil e cómodo escondermo-nos atrás de um ecrã, não é?)
Pergunto-me quando é que o feminismo deixará de ser necessário. Não é problema da direita política, da extrema direita ou da esquerda. Não é problema de nenhum bode expiatório. É um problema nosso.
É um problema da ignorância. Um problema da educação – ou da falta dela.
Continuamos a precisar do feminismo.
Mas porquê?
Porque o feminismo não é a opressão feminina. E tampouco deve servir como pretexto para a vitimização masculina (“existe um Dia da Mulher e não existe um Dia do Homem!”).
Porque eu, mulher, se tiver vários parceiros sexuais, sou mais rapidamente criticada do que um homem que me viole.
Porque um homem com idade suficiente para ter juízo, para ser pai de filhas, que se encontra no seu local de trabalho e durante o seu horário laboral se acha no direito de olhar para o meu decote e de me dizer que ando a provocar os homens (incluindo a ele).
E porque se filmo tudo e publico nas redes sociais, além de ir à televisão denunciar o assédio (assédio, sim – não temos de ter medo da palavra, porque o assédio existe), sou uma porca intriguista à procura de fama.
Porque um militante de um partido que exerce uma certa influência no país se acha no direito de propor que as mulheres que abortem tenham os ovários retirados.
Mesmo que apenas o tenha proposto às “mulheres (que) abortem no Serviço Público de Saúde, por razões que não sejam de perigo imediato para a sua saúde e cujo bebé não apresente malformações ou tenham sido vítimas de violação”.
Toda a gente tem o direito de achar o que eu devo fazer. Menos eu própria.
Toda a gente tem algo a dizer em relação ao meu corpo. Menos eu própria.
Toda a gente tem o direito a opinar sobre os meus direitos. Menos eu própria.
Porque, em plena pandemia, há quem ache que a decisão de usar ou não máscara, para proteger a saúde pública, é uma decisão pessoal – mas, ainda assim, faria tudo para proteger a vida humana, incluindo banir o direito ao aborto.
Porque – e pior que tudo isto – ainda existem mulheres que se acham no direito de dizer às outras mulheres como devem agir e como se devem sentir.
Porque o machismo mais grave, mais insultuoso e mais chocante não provém dos homens, mas das próprias mulheres (“os homens não são de ferro e as mulheres têm de saber isso”).
Porque o feminismo continua a ser necessário.
Para todos.
Para as mulheres e para os homens.
Porque o feminismo será necessário até deixar de o ser.
Post scriptum: Sr. Professor Francisco Aguilar, a única semelhança entre “feminismo” e “nazismo” é o sufixo de ambas as palavras.
Corrigido por Adriana Alves
AUTORIA
Uma pessoa de muitas paixões. Por isso, licenciou-se em Informação Turística, está a terminar o Mestrado em Jornalismo e quer tirar Doutoramento em História Contemporânea. A ideia de ter uma só carreira durante a vida toda aborrece-a. A Inês gosta de escrever, de concertos, dos The Beatles, de Itália, de conduzir e dos seus cães. Sonha em visitar, pelo menos uma vez, todos os países do mundo.