Cinema e Televisão

O Homem que matou D. Quixote: como encontrar humor no absurdo

Depois de oito rodagens falhadas de uma história delineada há 33 anos, estreou em Portugal no dia 17 de fevereiro O homem que matou D. Quixote, o trabalho mais recente do Monty Python Terry Gilliam. 

Inicialmente, a história de O homem que matou Dom Quixote tinha Johnny Depp como um executivo de publicidade e que viaja no tempo para o século XVII, onde é confundido pelo velho cavaleiro Dom Quixote com seu escudeiro Sancho Pança. Com o passar dos anos, Gilliam e seu “fiel guionista-escudeiro” Tony Grisoni desenvolveram uma conceção totalmente nova para o enredo, até porque viagens no tempo, além de clichés, são caras, portanto decidiu-se manter a história nos dias atuais.

Na narrativa reconfigurada, Adam Driver interpreta Toby, um diretor de marketing de sucesso que faz um anúncio para uma empresa de energia em Espanha, perto da vila onde dez anos antes tinha rodado o seu aclamado filme estudantil, usando um sapateiro local, interpretado por Jonathan Pryce como personagem de Dom Quixote. Quando retorna à vila para buscar uma inspiração que sente ter perdido, percebe que criou uma situação de mudança de paradigma naquela remota localidade especialmente na vida de Angelica, vivida por Joana Ribeiro, que de alguma forma representa a degeneração da vida de uma rapariga da aldeia cujas ambições artísticas, alimentadas por Toby uns anos antes, a levaram a uma vida de autêntica “lambe-botas”, como resume literalmente uma das cenas.

O fio condutor da história é uma espécie de sequência de eventos humorísticos, dramáticos e fantasiosos onde o sapateiro, que havia interpretado Dom Quixote no filme original, agora acredita que ele é realmente a personagem. O encontro entre Toby e Quixote proporciona o início de uma jornada em busca de grandes aventuras. “Hoje é um dia maravilhoso para viver aventuras! Sinto-o dentro de mim!”, ouvimos diversas vezes. 

Ao longo do filme, inúmeras referências artísticas são utilizadas. Logo no início, a menção à arte surreal dos Monty Python, da autoria do próprio Gilliam, parece indicar o tipo de história que está por vir. Também Hieronymus Bosh tem o seu lugar, uma vez que muitos dos seus trabalhos retratam cenas de pecado e tentação, recorrendo à utilização de figuras simbólicas complexas, originais, imaginativas, caricaturais e obscuras na época medieval – período em que este pintor holandês viveu. Este cenário serve também como ambiente onde se passa a novela de Cervantes. Por fim, seguindo a coerência deste estilo, os nossos caretos também participam numa das cenas mais apoteóticas gravada no Convento de Cristo.

Ao fim de quase duas horas, o homem que mata Dom Quixote transforma-se na personagem e absorve o seu caráter audacioso uma vez que é um “homem que nasceu para viver grandes perigos e aventuras” e vai “vivê-las para sempre”.

Mas a história da feitura desta película, que teve um orçamento de 20 milhões de dólares, segundo o próprio Gilliam, dava em si um filme.  Delineada em 1989, o realizador e guionista decidiu iniciar as filmagens em 1998. Tendo o guião sofrido tantas alterações de plot e personagens, em 2017 é que o projeto arrancou com as suas linhas finais como se pode assistir na sua antestreia no passado dia 10 de fevereiro. Neste dia, numa sala de cinema tão apinhada como a pandemia permite, Gilliam – que considera estes locais como verdadeiras catedrais – esteve à conversa com Nuno Markl e Ricardo Araújo Pereira (R.A.P.) sobre uma panóplia de temas. 

Fonte: Arquivo pessoal

O seu “passado-sempre-presente” nos Monty Python, onde o americano se iniciou como cartunista a fazer o storyboard dos sketches, é tido por ele como um período de sorte onde a trupe da qual fazia parte estava no local certo e na hora certa para que as suas gozações mútuas pudessem ter pessoas como Elton John, George Harrison ou Led Zeppelin a investirem dinheiro em suas produções para evitarem deduções fiscais.

Sobre a história de O homem que matou Dom Quixote, Gilliam relata que começou a escrever em “modo fúria”, mas ao longo dos anos teve liberdade para moldar o ângulo inicial da história, que seria como juntar a novela de Miguel de Cervantes com um marketeer. A partir daí o mote do filme passou a ser o humor no absurdo da condição humana. Os acontecimentos resultantes da realização da película poderiam por si ser um outro filme. Gilliam tem uma máxima em que considera que cada filme seu é “o primeiro e único que fará na vida”.

Fonte: Cinema Planet

Esta sua faceta Python obstinada de 81 anos deu origem a processos judiciais entre produtoras – como no caso do processo que envolveu Paulo Branco –  além de despertar a indignação pública sobre a forma como o Convento de Cristo em Tomar foi cedido como locação. Esta última desavença deveu-se a que num espaço, cuja construção data do século XII, cerca de 100 pessoas, botijas de gás e uma pira de 12 metros de altura a arder, além de pedras e telhas partidas, atearam fogo na discussão sobre a forma como é permitida a rentabilização do património nacional por produções estrangeiras. Como se não bastasse, houve um dilúvio bíblico no deserto (!) de Bardenas Reales em Espanha, uma das locações onde se passa a maior parte do filme. Ao longo dos anos, até os atores escolhidos como protagonistas morreram. Diante de tantos percalços a mulher de Terry Gilliam tentou convencê-lo a abandonar o projeto, mas ele deu preferência à “sensatez dos lunáticos e das crianças que não conhecem as limitações do que somos capazes.”

Fonte: nit

No final da sessão, ficamos com a sensação de que aquela história que acabamos de assistir é um pouco da história do próprio Terry Gilliam. Numa altura de cancelamento e de discórdia fácil na esfera digital, ele discorre sobre a liberdade de expressão. Considera que os filmes “são coisas muito perigosas“, que infetam a visão que se tem do mundo: “As pessoas que os realizam têm de se responsabilizar pelo que fazem aos outros”. Acredita que fazer um filme é uma forma de tentar descrever o mundo como o vê naquele momento numa espécie de tentativa desesperada de ser Deus, mesmo achando que “Deus é mais dececionante do que se imagina”. 

Fonte: cinema1554

É inevitável concluir que a analogia entre criador e criatura foi, até então, uma busca impraticável por objetivos idealísticos que, mesmo com tantos percalços, singrou na sua forma única de narrar uma aventura ao mesmo tempo secular e atual. Tão quixotesca como se quer uma epopeia que atravessa o tempo.

Fonte da capa: Diário de Notícias

Artigo revisto por Miguel Tomás

AUTORIA

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Colecionadora (in)voluntária de diversas experiências de vida, interessada por tudo o que lhe desperte a sede de conhecimento: da literatura ao cinema, da filosofia à psicologia e de como ter uma refeição decente pronta em 10 minutos. Aprendiz no ofício da construção de narrativas, crê que somos o herói da nossa própria história. Promete que quando for crescida terá um perfil ativo nas redes sociais.