O Mundo Que Só Eu Leio
O Braille é um sistema de escrita e leitura que existe há quase dois séculos. Ao longo do tempo, foi ganhando novas formas e novos acessos. O braille em papel, método tradicional de leitura para deficientes invisuais, sobrevive à era tecnológica.
“H
oje em dia está a abandonar-se muito o braille à conta das tecnologias, o que é compreensível. O braille, em termos de arrumação, ocupa muito espaço. Um livro vosso [normovisuais] são 20 volumes ou mais em braille, o que custa arrumar.” Cati de Matos Ramos, tem 42 anos e nasceu com deficiência visual. Há 7 anos, perdeu a visão total.
O sistema braille foi criado pelo francês Louis Braille, em 1824. O apelido, que deu nome à nova forma de escrita universal, permite à comunidade invisual ler ou escrever através de um sistema de seis pontos, designados por Célula Braille. A combinação destes seis pontos, dispostos em duas colunas de três pontos cada, forma cada um dos 64 símbolos em relevo que fazem parte do alfabeto Braille. Podem representar letras, algarismos e sinais de pontuação. A leitura é feita através do tato, da esquerda para a direita, tal como é feito pelos normovisuais.
Mais um dia, que não é um dia a mais
São quase 6h54 e Cati chega à paragem do autocarro junto à Misericórdia de Benavente. Como todos os dias, vem de braço dado com o companheiro, também ele cego, que espera até ela seguir viagem. Chega o 901, com destino a Lisboa. Senta-se no primeiro lugar. A viagem começa.
Aos três meses fazia movimentos fora do normal com os olhos. Os médicos diziam que era estrabismo e se corrigia. “A minha mãe punha-me os brinquedos à frente e era como se nada fosse.” A deficiência visual confirmou-se quando tinha ano e meio.
Começou a aprendizagem do braille em escolas primárias especializadas para cegos. A aprendizagem do braille quando se é cego precoce é facilitada pela recetividade à aquisição de conhecimentos. É por esta razão que muitos cegos tardios não sabem ler em braille. Um estudo realizado pela PPLL Consult para a Associação de Cegos e Ambiopes de Portugal (ACAPO), em 2012, mostrou que relativamente ao domínio do braille, quem adquiriu a deficiência numa idade menos avançada – antes dos 15 ou entre os 15 e os 29 anos – tem um maior domínio sobre o sistema braille (67%). Os dados revelados pelo estudo mostram ainda que os inquiridos cuja deficiência visual se revelou na infância ou na juventude alcançaram um maior sucesso escolar e mais habilitações.
Foi o caso de Cati. Licenciou-se em Direito, na Universidade de Coimbra. De seguida fez uma pós-graduação em Proteção de Menores. Estagiou na Câmara da Figueira e fez voluntariado na Associação Portuguesa de Apoio à Vitima (APAV). Apesar da notável formação, as oportunidades de emprego ainda não tinham surgido. “Como ainda não tinha trabalho, voltei a ir estudar. Fui tirar uma especialização em ciências documentais.”
Após a especialização esteve um ano em casa, mas sempre ocupada com outras atividades – não parou. Em 2013 decidiu fazer um curso de massagem. Seguiu-se um curso de telefonista/rececionista e outro de tecnologias. O currículo, que já vai longo, continua em atualização. Concluiu a formação teórica na área administrativa e de atendimento ao público no passado dia 21 de abril, e atualmente, está a estagiar no Instituto Ricardo Jorge, em Lisboa.
O local de estágio foi-lhe comunicado pelo técnico de inserção da ACAPO: “Sabe o que eu lhe digo? O seu local de estágio vai ficar ao pé do estádio do sporting”, conta entre risos. Clubes à parte, Cati ficou entusiasmada com a notícia.
Adesão tecnológica a meio gás
“Inicialmente, tive um computador que me foi atribuído por ajudas técnicas, porque as coisas são muito caras.” O SAPA, Sistema de Atribuição de Produtos de Apoio, beneficia pessoas com deficiência ou incapacidade temporária. Para o ano de 2016, foi atribuído um valor de 13.980.000,00€ comparticipado pelos Ministérios da Educação, do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social e da Saúde. Mas, apesar das ajudas existentes, a procura é muita e esse valor não chega para toda a população com deficiência visual.
Apesar de o computador ter entrado na sua rotina diária, já com os recentes smartphones de ecrã tátil, não foi da mesma forma. “Se eu preciso das mãos, de teclas, de coisas salientes para trabalhar, então agora, com uns «varrimentos» eu não vou conseguir”, pensou Cati quando surgiram estes novos equipamentos.
Para se informar, além da televisão, faz parte de algumas listas de instituições que enviam notícias. A maioria dos livros que lê atualmente são em suporte digital, porque não há espaço físico a ser ocupado. Contudo as novas formas de leitura não substituem o braille em papel. “Eu não prescindo do braille, porque foi a minha ferramenta de trabalho desde criança.”
A viagem está prestes a terminar. “Já estamos a chegar.” Sem qualquer indicação anterior, sabe que a paragem está próxima. “Como só entro às nove, não tenho necessidade de apanhar metros para ir já para a formação. Vou reforçar um pouco mais o pequeno almoço à pastelaria” [risos].
Espólio bibliográfico
World Book Encyclopedia – 191 volumes em braille. Foi este o primeiro livro recebido pelo departamento da Área de Leitura para Deficientes Visuais da Biblioteca Nacional de Portugal. Carlos Ferreira é o responsável pelo departamento há cinco anos. Dos sete trabalhadores da ALDV, três são cegos totais, um tem baixa visão – Maria Martins, que dá a conhecer mais pormenores sobre a ALDV – e dois colaboradores sem deficiência visual. Há ainda 42 voluntários: colaboram na produção dos livros áudio e fazem a revisão do texto digital.
O serviço da BNP/ALDV disponibiliza audiolivros analógicos e digitais e livros digital texto gratuitamente. Além destes formatos, tem ainda o Daisy 2.0 e o EPAP 2.0. Contudo, Carlos Ferreira admite “O formato ainda mais procurado é o braille em papel. O segundo é o formato áudio.” A explicação é simples: “As pessoas cegas só têm uma forma de ler: em braille. Contudo, há pessoas que, ou porque não tiveram a possibilidade de ser alfabetizadas em braille ou porque cegaram tarde, não têm competência para ler em braille.”
Os livros em formato digital começaram a ser disponibilizados pela biblioteca a partir de 2015. “Em termos de braille é exatamente o mesmo que aparece no papel – tem o mesmo layout – só que não é físico. A nuance é que implica ler uma linha de cada vez”, explica o responsável pela ALDV.
A biblioteca publica frequentemente novos materiais, para que os leitores não deixem de estar atualizados. Produz, em diferentes formatos, a revista Ponto e Som, uma publicação periódica, e recebe ainda produções do Centro Prof. Albuquerque e Castro, da Câmara Municipal de Lisboa e revistas do estrangeiro.
São 717 os leitores inscritos na BNP/ALDV. Quando é pretendido um material em formato áudio ou digital é enviado um link. Para quem não dispensa a leitura do braille em papel, este também pode ser enviado, sem que o leitor tenha de se deslocar à biblioteca. “A maior parte dos nossos pedidos são leitores à distancia. Temos umas pastas próprias em que os livros são enviados”, explica Maria Martins.
Cati reconhece o papel da BNP/ALDV para a comunidade invisual: “Tem um grande espólio bibliográfico. Não tenho grande disponibilidade, mas se quiser requisitar algum livro tenho essa possibilidade”, admitindo que o acesso aos livros não é limitado pela sua falta de tempo.
Existem aparelhos como o Braille Sense U2, que permitem armazenar milhares de livros em braille digital. A vantagem é poder ler mais e em qualquer lado, a desvantagem é o preço: “Este custa à volta de 3500€. Fui eu que comprei, mas, provavelmente, nem toda a gente pode comprar. Em Portugal, existia um programa de atribuição de ajudas técnicas. Às vezes é um processo complicado. Pode-se estar um ano à espera…”, comenta Carlos Ferreira.
Apesar disso, reconhece que já existe um elevado número de pessoas cegas que recorrem às novas tecnologias que permitem ouvir ler ou ler em braille digital. “É a tendência e é para lá que vamos caminhar. Neste momento estamos a mudar para uma nova aplicação de gestão da base de dados. Vamos disponibilizar uma serie de informação digital que os leitores podem, em casa, às tantas da manhã, descarregar.”
O alimento que limita a estagnação
Em 1956, José Albuquerque e Castro funda a Imprensa Braille. O nome do professor ficará para sempre dignificado através do Centro Professor Albuquerque e Casto, onde são atualmente produzidos livros, publicações – poliedro, rosa-dos-ventos, enigma, jornal de notícias, visão e visão júnior – e outros materiais em formato braille.
“É de lá que vêm muitas das nossas revistas e das publicações das obras literárias em braille”. Cati destaca a revista poliedro, produzida desde 1956: “Chama-se poliedro, porque aborda muitos temas da atualidade”, um fator que considera importante para comunicar com os outros.
Desde a Alemanha, passando pela Guatemala, até ao Uruguai, os conteúdos produzidos pelo Centro chegam atualmente a vinte e dois países.
João Belchior, diretor do Centro Professor Albuquerque e Castro, continua o legado deixado pelo professor, mas acompanha uma inovação, introduzida há vinte e um anos: a produção em braille por processos informáticos. “Aumentou a produção de livros e acelerou o processo de transcrição, antes feito totalmente em matrizes.”
As revistas produzidas pelo Centro funcionam por assinatura, com um valor de 11€/ano, mas a maioria dos leitores recebe as publicações de forma gratuita. Já os livros publicados têm um preço fixo de 2,5€/volume.
As novas tecnologias disponíveis para deficientes visuais fizeram decrescer os pedidos de livros. “No entanto houve um aumento proporcional de produção/ solicitação de outros materiais em braille e dupla leitura, como materiais turísticos, culturais, cartões de visita e afins.”, admite João Belchior. O Centro pretende apostar nestes materiais futuramente.
É praticamente impossível a produção de livros em braille acompanhar grande parte daquilo que há no mercado para normovisuais. “Os nossos critérios de seleção baseiam-se na opinião dos leitores/assinantes, solicitações de Bibliotecas/Escolas, livros do Plano Nacional de Leitura”, como forma de corresponder à procura.
“A Amiga Genial”, de Elena Ferrante foi a última obra literária produzida pelo Centro Prof. Albuquerque e Castro.
São, maioritariamente, Escolas de Referência que recebem os conteúdos produzidos pelo Centro, incluindo o Centro Helen Keller. Esta instituição atualmente já disponibiliza conteúdos em formato digital aos alunos com problemas visuais e outras necessidades educativas. Arménio Silva, técnico de braille do Centro Helen Keller, relembra que a primeira vez que uma criança da escola começou a trabalhar com conteúdos digitais foi por volta do ano de 2005.
O braille em papel ainda não foi dominado pela tecnologia. Ponto por ponto, é a essência que permanece. A comunidade invisual vive do tato, mas qualquer «limitação» permanece fora do dicionário braille.