Poor Things – Uma ode ao desconfortável
Poor Things, de Yorgos Lanthimos, chegou aos cinemas portugueses e veio brincar de forma colorida com a forma como encaramos a nossa sociedade. A verdade é que esta história, sobre uma senhora grávida que se atira de uma ponte e é encontrada por um cientista louco que mexe com a sua anatomia, faz-nos encarar uma realidade desconfortável, mas não tão longínqua.
O filme conta-nos a história de Bella Baxter, uma jovem que vive no que aparenta ser um palácio deslumbrante, mas sem cor. As imagens a preto e branco mostram-nos a rotina desta adulta que, emocionalmente e mentalmente, não passa de uma pequena criança. A forma como interage com os adultos e com as suas coisas de forma infantilizada contrastam com a sua aparência física, o que contribui de imediato para um desconforto no público. Esta história estranha conta ainda com a presença do cientista Dr. Godwin Baxter, tutor de Bella. A sua relação é de imediato encarada como a de um pai e uma filha, que, por qualquer razão, apresenta alguns desvios psicológicos. Neste palácio, o Dr. Godwin faz as suas experiências com corpos de humanos e animais, com a maioria dos seus resultados a correrem pela casa – como uma galinha com cabeça de bulldog. Toda a relação diária destes dois com a sua empregada mergulham-nos num mundo estranho, esquisito e deveras incómodo.
Após a chegada de um cientista auxiliar que anota todos os progressos de Bella (o mais belo e complexo experimento de Dr. Godwin), percebemos que a possível história de amor entre os dois será interrompida por Duncan Wedderburn. É Duncan que representa o início de uma autodescoberta incrível de Bella, que é finalmente libertada da sua prisão disfarçada de palácio. O preto e branco é, então, substituído pelas cores dos diferentes destinos que Bella e Duncan visitam, incluindo uma Lisboa futurística com os seus pastéis e o Fado. É nesta viagem que Bella encara o que de melhor há no mundo, mas também as consequências de uma sociedade assente no capitalismo: os diferentes confrontos, as diferentes pessoas com quem se cruza contribuem para a sua construção e crescimento e, no fundo, a sua autodescoberta.
O que começou como uma pequena criança dotada de conhecimento e procedimentos científicos, graças ao seu tutor, torna-se uma adulta repleta de filosofia e preocupações sociais. A curiosidade de conhecer o mundo e todas as possibilidades que existem fazem-na detetar o que será o mais justo, ou não, incluindo tudo o que foi feito com o seu próprio corpo. Apesar de se encarar como uma experiência do Dr. Godwin, Bella assume a sua própria história com empatia e carinho e é isso que nos faz aproximar de uma personagem que, a princípio, era fechada emocionalmente.
A construção do filme em termos cinematográficos também auxilia o acompanhamento desta história. Em primeiro lugar, a banda sonora, essencialmente instrumental, contribui para a estranheza no espetador. As pequenas partes com música são altamente insuportáveis, com pequenos excertos com volume alto que contrastam com o silêncio que se vai sentindo ao longo do filme. Em segundo lugar, os cenários e os locais escolhidos, bem como as alterações feitas em pós-produção, levam-nos para um mundo fantasiado e uma versão alternativa do que nós vemos como verdadeiro. Os becos, os edifícios altos, os veículos futuristas e os edifícios antiquados são alguns dos detalhes dicotómicos que podemos encontrar neste filme. Em terceiro lugar, mas não menos importante, temos o tão falado guarda-roupa. Inicialmente, conseguimos ver Bella com roupas mais infantis, como as ceroulas que leva sempre consigo. Numa fase mais avançada do filme, no entanto, conseguimos observar roupas mais espampanantes, coloridas, sempre com detalhes pesados nos ombros. A verdade é que as roupas escolhidas para a personagem contribuem para a forma como a encaramos e, também, para a sua autodescoberta.
De forma sucinta, as várias cenas íntimas, as ações imorais e a postura geral de Bella construíram uma ode ao desconfortável que vem questionar as normas sociais que todos seguimos, os papéis de género que assumimos e, ainda, as dinâmicas de poder que encaramos como invioláveis. São estas complexidades que tornam o filme uma obra estranha, mas muito importante em termos cinematográficos e sociais. Todo este questionamento culmina no empoderamento de Bella e, consequentemente, no autoquestionamento e autodescoberta do espetador.
Fonte da capa: Wallpaper Abyss
Artigo revisto por Lourenço M. Ribeiro
AUTORIA
A Laura não sabe estar quieta. Adora boas recomendações - especialmente de filmes bombásticos - e aceitou a oportunidade de ler mais sobre a área ao ser editora de Cinema e Televisão. A escrita sempre fez parte desta inquietude, com especial atenção para o despejar de emoções após uma sessão de cinema. Coloquem um bom neo-noir, fervam um bom chá de hibiscus e têm a sua companhia para sempre.