Somos todos quê?
Já ouviram a expressão Faz o que eu digo, não faças o que eu faço? Por certo que sim. Trocado por miúdos, o provérbio significa o seguinte: facilmente apontamos o dedo reprovador a alguém, mas dificilmente olhamos para o nosso próprio umbigo.
A cultura portuguesa está povoada por personagens típicas. Desde a Padeira de Aljubarrota ao Zé Povinho, passando pelo Velho do Restelo, o imaginário popular é vastíssimo. A coscuvilheira do bairro – aquela mulher dada à alcoviteirice que se empoleira ao beiral da janela a afiar a língua sobre a vida privada da vizinhança – é um exemplar sintomático da sociedade actual. A dita senhora modernizou-se e migrou para as redes sociais, o palco principal da maledicência.
O fenómeno da democratização das redes sociais é um pau de dois bicos: se, por um lado, dá aos cidadãos uma voz activa, permitindo que as suas opiniões cheguem a uma audiência alargada, por outro, resulta numa perigosa predisposição para que os mesmos se sintam com a total legitimidade para dizer o que quer que seja, sem qualquer filtro.
Nos últimos tempos, não têm sido raras as situações que demonstram que as pessoas não têm qualquer pudor em dizer o que lhes vai na real gana. É um clichê mas, de facto, quando escondidas atrás de um ecrã, as pessoas permitem-se dizer tudo e mais alguma coisa. Bem sei que cada um é livre de expressar o seu pensamento. Contudo, isso não significa que desrespeitemos o dos outros. Se queremos ser respeitados, temos que saber respeitar (quer concordemos quer não com as opiniões alheias).
Vejamos dois exemplos. No dia 7 de janeiro, fomos todos Charlie. Alguém ainda se lembra? Após o atentado à redacção do jornal francês Charlie Hebdo, que vitimou doze jornalistas, a hashtag #JeSuisCharlie tornou-se numa bandeira da luta pela liberdade de expressão. Ao mesmo tempo, o mundo ocidental apontou o tal dedo reprovador ao povo muçulmano. Mais recentemente, perante a vaga migratória de islâmicos, que fogem à guerra rumo ao Velho Continente, formaram-se duas barricadas: os a favor e os contra o acolhimento destes refugiados por países europeus. Raras foram as tomadas de posição sensatas com que me deparei por essas redes sociais fora. Ambos os lados pecaram num aspecto: a falta de respeito pela opinião do outro. Até mesmo aqueles que se assumem mais tolerantes assumiram o papel de extremistas raivosos. Afinal, o que somos?
Diz que está na moda sermos solidários. Perdoem-me se a minha afirmação vos soar mal. Não sou insensível aos problemas que assolam o mundo em que vivemos. Mas, sinceramente, sinto que andamos submersos na hipocrisia. Na verdade, a solidariedade é um hype e não um gesto ou uma atitude sinceros. Está na voga sermos qualquer coisa, portanto. Todos os dias somos uma coisa diferente. E, ao mesmo tempo, não somos nada. Mas, na vida real, no conforto do nosso sofá, somos acomodados.
Então, afinal de contas, somos todos o quê? Somos todos intolerantes. Aliás, #SomosTodosIntolerantes (dizem que com a hashtag soa melhor).
Posto isto, (re)afirmo que sou um acérrimo defensor das redes sociais. Mas também sei identificar os seus perigos. E, neste sentido, considero que estamos, enquanto utilizadores, a subestimar e a subaproveitar o seu potencial. Por fim, fica a sugestão: olhemo-nos ao espelho antes de apontarmos o dedo.
AUTORIA
Diz que é o cota da ESCS MAGAZINE. Testemunhou o nascimento do projeto, foi redator na Opinião e, hoje, imagine-se, é editor dessa mesma secção. Recuando no tempo... Diz que chegou à ESCS em 2002, para se licenciar, quatro anos mais tarde, em Audiovisual e Multimédia. Diz que trabalha há nove no Gabinete de Comunicação da ESCS – também é o cota lá do sítio. Diz que também por lá deu uma perninha como professor. Pelo caminho, colecionou duas pós-graduações: uma em Comunicação Audiovisual e Multimédia (2008) e outra em Relações Públicas Estratégicas (2012). Basicamente, vive (n)a ESCS. Por isso, assume-se orgulhosamente escsiano (até ser cota).