Um ensaio sobre Portugal
Na Fundação José Saramago, o trabalho nunca acaba. No nosso país, ainda há muito trabalho a fazer. Estas são as duas realidades que Pilar del Rio vive atualmente. Ambas exercem influência na sua forma de estar e ver o mundo.
“Não lhes confio o meu futuro, tal como não lhes confio a minha mala!” Foi assim que Pilar del Rio, presidenta da Fundação José Saramago, demonstrou o seu descontentamento com a falta de ambição dos jovens de hoje. “Esta geração, de uma forma genérica, não me interessa. Para que me interessassem teriam de vir aqui todos os dias, de mãos cheias, mostrar-me de que forma estão a contribuir para a sociedade. Só depois de ver essas mãos – não de reivindicação, não de petição, não de propostas, não de protestos, não de assuntos feitos – é que passaria a confiar. Entretanto, não conheço os jovens e não sei onde estão”, afirma.
Da grande janela do seu escritório avistam-se grupos de pessoas que aguardam a sua vez para entrar na Casa dos Bicos. O dia estava cinzento e chuvoso, mas nem isso as demovia. O cenário era perfeito para alguém que gere um negócio associado à cultura, no nosso país. “Acho um nojo o facto de não termos Ministério da Cultura”, afirma Pilar. “Portugal tem um governo tão mau, que para além de não ser capaz de ter Ministério da Cultura não tem Secretaria de Estado com assento em concelho de ministros. A cultura é a única que pode salvar Portugal do estado em que se encontra e estes ‘Relvas’ e companhia não fazem caso.”
Na Fundação, é Rita Pais quem guia os visitantes na descoberta da vida e obra de José Saramago. Depois de cerca de 30 anos de trabalho com o autor, enquanto revisora dos seus livros, dedica-se agora a partilhar o seu conhecimento e as suas experiências com todos aqueles que aparecem. “Um dia, Saramago virou-se para mim e perguntou-me: Sabes porque é que eu ando sempre curvado e me rio pouco? Porque não me consigo desligar do peso que o mundo exerce sobre mim.” Os visitantes, na sua maioria professores do ensino secundário, depositam nela um olhar ternurento – possivelmente de quem gostaria de ter estado presente no momento em que as palavras saíram da boca do autor.
Ainda no seu escritório, Pilar relembra também o poder das palavras do seu marido. “Saramago educava cidadãos. Foi por isso que escreveu um livro maravilhoso, magistral, absolutamente não entendido em Portugal, que se chama A Caverna – uma obra onde confundimos a realidade com as sombras. Até hoje, ainda não vi uma crítica que lhe fizesse justiça.” A presidenta atribui, mais uma vez, responsabilidades à deterioração do mercado cultural: “Somos influenciados pelo neoliberalismo. As pessoas pensam que a cultura não tem importância nenhuma. A única coisa que importa é o futebol, a gastronomia… A pintura, a literatura, ter uma boa obra de arte em casa, não interessa. Retrocedemos séculos. A cultura deixou de ser um bem e passou a ser uma chatice.” O jornalismo nacional foi igualmente responsabilizado: “Se um jornal dedicar três das suas páginas à cultura, estamos num dia bom. Desagradam-me as secções de futebol (porque as de desporto desapareceram) e economia. Se é a única verdade possível, então eu ponho-a no lixo, porque eu acredito que outra economia é possível e que outro mundo é possível.”
Os quatro andares da Casa dos Bicos são, há cinco anos, utilizados no âmbito da Fundação José Saramago. É no primeiro andar que Rita Pais faz as suas visitas guiadas. Nele estão expostas todas as traduções dos livros do autor, bem como fotografias e manuscritos. O pequeno grupo de professores passeia ao ritmo da guia. É junto a um livro, cujos caracteres que constam na capa todos desconhecem, que Rita se prepara para contar mais uma história. “Este livro foi traduzido para árabe. No entanto, aqui na Fundação ninguém compreende os caracteres. Apenas sabemos que o livro é lido em sentido contrário. Não imaginam a nossa surpresa quando um visitante entendido no assunto nos chama à atenção para o facto de o livro se encontrar exposto de pernas para o ar.” A gargalhada é geral.
Enquanto evoca o passado partilhado com o autor, Pilar também sorri. “Saramago era como um sol, que iluminava tudo à sua volta”, afirma. No entanto, o olhar de serenidade depressa dá lugar à expressão vívida e reivindicativa a que nos habituou. “Durante o seu tempo de vida, não havia necessidade de eu estar apegada a Portugal uma vez que nem sequer era conhecida. Depois da sua morte eu pedi nacionalidade portuguesa, mas só depois. Em primeiro lugar, porque não queria que ele se sentisse obrigado a pedir nacionalidade espanhola. Em segundo lugar, porque eu queria pagar os impostos de Saramago em Portugal. Tão pouco romântico quanto isto.” Assim, o legado do autor continua em território nacional, mesmo que isso tenha custado à presidenta a confiança do seu país – “Sou considerada uma traidora. Mas é-me indiferente. Podem pensar o que quiserem.”
No primeiro andar a visita prossegue. Rita conta agora o episódio insólito referente à encomenda – efectuada por uma empresa angolana – de várias cópias do livro Manual de Pintura e Caligrafia. “Quando os livros lá chegaram e os responsáveis se aperceberam de que não se tratava de verdadeiros manuais, choveram reclamações. Saramago, em tom de brincadeira, costumava dizer que os bichos ficariam encarregues de comer todos os livros.” Perto, mas ao mesmo tempo longe, no seu escritório, Pilar não aborda temas com os quais se tenha vontade de brincar. “ A política é corrupta porque a sociedade é corrupta. A política é o desejo da sociedade, bem como o jornalismo. Os políticos que elegemos são aqueles que ambicionamos ser. Ninguém quer ser um Jerónimo [de Sousa]. Ninguém quer ser um deputado do PCP. Todos querem ser Relvas”, afirma. Os visitantes procuram conhecer Saramago, Pilar procura perceber Portugal.
Fotografia: Raquel Rebelo