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“Vivi com a rádio.”

Entrevista a Francisco Sena Santos – Parte I
Esta é a primeira de duas partes.

Podes ouvir a entrevista completa aqui: ESCS FM

Faz surf, já esteve em todos os continentes e é o correspondente português da rádio australiana SBS. Estudou medicina, mas trocou o estetoscópio pelo microfone, as ondas dos batimentos cardíacos pelas ondas da voz, o bisturi pela caneta. Começou a fazer jornalismo no jornal Record há 43 anos, quando ainda era um estudante do secundário. Depois, foi radialista. Editou e apresentou noticiários na TSF e na Antena 1. É professor na Escola Superior de Comunicação Social em Lisboa.

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A história da rádio em Portugal pode ser contada sem mencionar o seu nome?
A história da rádio é a história das pessoas que a fazem. (Sou) um de muitos. Sei contá-la sem estar lá. Há pessoas extraordinárias. É curioso… no outro dia pus-me à procura de quem são as pessoas mais relevantes na história da rádio… quase todas são bastante antigas, estão antes, estão para trás de mim. Há uma pessoa que é minha contemporânea – que é um bocadinho mais crescida, mas que é minha contemporânea – e que para mim é um papa da rádio: o Adelino Gomes. É a figura mais relevante, mais importante, com maior dimensão humana na rádio. Mas depois há gente, há pessoas, que eu só ouvi em gravações. Há um senhor, Dom João da Câmara, que era um repórter espantoso e que eu procurava nos arquivos da emissora nacional – arquivos sonoros –; era um repórter fabuloso. Há uma pessoa – ele foi o meu primeiro diretor – que é o Artur Agostinho. E a capacidade que ele tem de contar histórias: é isso que me impressiona nos mais antigos, é uma extraordinária capacidade para improvisar a contar histórias. Há vários repórteres muito mais novos. No arranque da TSF, por exemplo, encontrei gente com um domínio do improviso… Estou a pensar no atual diretor da Antena 2, o João Almeida, especificamente no improviso. Enquanto, por exemplo, o João Paulo Baltazar parecia que tinha uma pinça a procurar a palavra certa, a experimentar as palavras certas. O João Almeida e o João Manuel Mestre – dois mestres, como o nome – (são) dois mestres no improviso. Neste momento que nós estamos a viver encontro na rádio menos pessoas – talvez seja eu que estou a ouvir mal ou que esteja distraído – assim marcantes. Tenho em conta um aspeto: no caso, por exemplo, destas pessoas (da) TSF que estiveram meses e meses, depois da formação universitária, a fazer uma formação específica para a rádio, a trabalhar como fazer aquela rádio especificamente, com aquela forma, etc. e isso penso que foi determinante.

Arrepende-se de alguma coisa que fez para a rádio?
Todos os dias. “Que chatice, fiz isto…” Eu acho que há um princípio que é: não (nos) arrependermos. Não há arrependimento, há reconhecer o erro: “Isto foi mal feito, que chatice!”. Todos os dias… “Porque é que eu não peguei naquilo. Porque é que contei isto assim?” Sim, claro.

E pela rádio?
(Pensativo) Hum… Dou o melhor de mim, dou o melhor que tenho pela rádio.

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Houve algum momento ou período em que se sentiu infeliz a fazer rádio?
Não. Por princípio, eu rechaço a infelicidade. Procuro encontrar em todos os momentos o que há de bom na vida. A rádio como “chegar aos ouvidos dos outros”, como “encontros de almas”, para contar histórias, como a voz que conta, são ideias que me agradam muito.

Diz que um jornalista não pode falhar no seu compromisso com o rigor e com a verdade. Alguma vez sentiu ter falhado neste compromisso de alguma forma?
Não intencionalmente, mas sim. Algumas reportagens que são das mais marcantes, daquelas que suscitaram maior efervescência, são reportagens em que – nalguns casos eu não pude ouvir a gravação porque não havia gravação, mas estou a pensar em dois casos – houve excessos que lastimo. No incêndio do Chiado houve muitos exageros. No buzinão na ponte sobre o Tejo houve muitos exageros. Acho que, mais do que exageros, houve um envolvimento-adesão, ou seja, não foi possível ficar fora dos acontecimentos. Houve um momento em que a rádio foi 24 horas sob 24 horas notícia; foi nos momentos mais dramáticos de Timor. Vários momentos foram dramáticos em Timor, mas (falo) no momento a seguir à votação que levou à independência e a seguir a uma guerra dramática, em Díli e noutros locais de Timor. Duas rádios portuguesas – neste caso, por um lado a TSF, que foi pioneira, e logo a seguir a Antena 1 – no mesmo dia passaram a ter uma emissão non-stop com Timor. E aí foram cometidos muitos excessos, houve um claro engajamento com a causa da independência de Timor e o rigor ficou sacrificado, sim.

Qual é que é o seu maior medo?
É ter medo. O meu medo é alguma vez ter medo. Ao longo da vida a minha postura foi sempre não ter medo; (foi sempre): vamos defender aquilo em que acreditamos.

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Disse numa entrevista: “Quando eu era criança escrevia jornais e revistas em casa; o jornalismo atraiu-me desde muito cedo.” Não sabe explicar porquê?
Uma das minhas primeiras memórias é de um avô a contar-me histórias ao ouvido. Depois ele desapareceu e não tinha quem me contasse histórias ao ouvido. A ideia de contar histórias é uma ideia que me fascina.

Qual é que foi a génese da sua paixão pela rádio? Como surgiu? Lembra-se da primeira vez em que esteve num estúdio?
Lembro… É tarde. Claramente posso dizer que vivi com a rádio. Porquê? Porque os meus pais, enfim, após algumas controvérsias, deixaram que eu tivesse um rádio na mesinha de cabeceira. Protestaram, disseram “não pode ser, não é um sono descansado”. É curioso… falávamos do medo há bocadinho; acho que tinha a ver com o medo. A minha mãe é do Norte, é de Lamego, nós tínhamos lá uma quinta e na altura das vindimas – setembro sobretudo – ia-se para a quinta, e o quarto onde eu ficava era um quarto muito grande e eu tinha medo. Estou a dizer coisas que não devia estar a contar. Logo acima havia um cemitério, eu tinha medo, sabia lá se os mortos não saiam lá do cemitério; aquilo assustava-me um bocado. Uma vez tinha passado pelo cemitério, vi uma nuvem e não dormi quase nada nessa noite. Então a telefonia, o rádio, o rádio que tinha na mesinha de cabeceira, era uma espécie de segurança: “está aqui uma pessoa a falar comigo”; era a telefonia. E assim, aos cinco anos, lembro-me perfeitamente de que ainda estava na classe infantil no Liceu Francês, passei a ter sempre um rádio. Dormi sempre – desde que sozinho – com um rádio ligado. Provavelmente vem daí e o meu gosto. Fui-me afeiçoando a programas de rádio, a vozes da rádio, a pessoas que contavam histórias na rádio e pronto.

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Lembra-se do que é que ouvia nessa altura?
Lembro-me. Tenho uma vaga memória do som do “Simplesmente Maria”, uma novela que era precursora – em versão radiofónica – das telenovelas que agora povoam as noites dos portugueses, dos brasileiros e de outros. Confesso que não ouvia particularmente. Há aqui uma coisa que é um pouco uma distorção, havia uma coisa que era uma fixação: ouvir as notícias. E às vezes eram noticiários – eu já pude recuperar alguns dos noticiários que eu ouvia quando era muito miúdo – que não tinham nada de relevante, mas eu gostava de ouvir as notícias, queria saber. Lembro-me perfeitamente – tinha 14 anos – de que segui um folhetim apaixonante: as notícias (eram) muito oficiais com vozes que pareciam vindas lá do além, vozes de ouro da rádio a contar o Salazar a cair da cadeira, portanto, em 68, quando o Salazar caiu da cadeira e depois foi substituído – veio o Marcelo Caetano. Aquilo para mim foi um tempo glorioso. Eu tinha uma telefonia com SW, com ondas curtas, e muito cedo comecei a ouvir telefonias. Gostava muito de ouvir rádio que se fazia no exterior e vem daqui o encantamento.

Falou há pouco da sua família, que se opôs a ter a telefonia na sua mesa de cabeceira. Também não contou com o apoio da sua família nesta paixão que é a rádio…
Pois não… Foi uma chatice.

Porque é que eles não queriam que fosse para a rádio?
Porque achavam que aquilo não era uma coisa normal… Foi difícil; saí de casa. Eu antes de chegar à rádio estive num jornal desportivo. Para a minha família, entenda-se para os meus pais, aquilo começou por ser o desvario porque…

Estavam à espera de um médico.
Era. E pior ainda. Eu queria ser o primeiro a chegar ao jornal, ao Record, às dez da manhã e só saía de lá com o jornal na mão. Felizmente naquela altura só havia jornal três vezes por semana: às terças, quintas e sábados. Eu só saía do edifício do Diário Popular – onde funcionava o Record, onde está agora O Observador na Rua dos Caetanos – às três e meia da manhã, quatro da manhã. Dava-me um gozo imenso ter aquele cheiro da tinta nos jornais e assistia à paginação. Tinha que acompanhar todo o processo de fabricação, e os meus pais ficavam loucos comigo quando chegava a casa, na altura, vivia em casa deles.

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Porque é que diz que a medicina e o jornalismo não têm nada em comum?
Não têm, quer dizer… para mim foi útil saber umas coisas de medicina. É útil às vezes. Acho que não me engano quando é preciso dizer nomes da medicina, para isso é útil. Mas como jornalista nunca me interessou ser jornalista na área da saúde. Na área da ciência interessou-me, puxei muito a ciência para as coisas que fazia, mas a saúde nunca foi uma área que me interessasse.

Mas era um bom estudante ou era um baldas?
Há uma cadeira fronteira, uma cadeira do terceiro ano que foi Anatomia Patológica… Um jornalista não deve dar entrevistas… Houve ali um fator perturbador: na altura em que eu namorava com a dona da cadeira, aquilo tornou-se mais agradável. E foi assim que passei o meio do curso, ou seja, tinha duas coisas que me agradavam: uma namorada no Hospital de Santa Maria e o namoro com o jornal, mas o namoro com o jornal levou a melhor.

A rádio está doente ou de viva saúde?
A rádio está sempre pujante. Acho que está um bocado mal arranjada. Precisa de pessoas – como as que fazem a ESCS FM e outras – que a ponham bonita. O Fernando Alves tinha uma frase no arranque da TSF, antes da TSF ser uma rádio regular nas emissões piratas: “Fica bonita telefonia.”. Eu acho que a telefonia está a precisar de ficar bonita.

Entrevista realizada em abril de 2016.