Artista do Mês – Mário Linhares: «O desenho é a melhor forma de conhecer o mundo.»
Cinco da tarde e uma pastelaria na Capital. Vislumbra-se uma mão a segurar um caderno. De sorriso fácil e sem pressas, Mário Linhares fala da sua profissão como sendo uma extensão da sua própria vida. «Sou professor por escolha e desenhador por vocação», revela.
Quando começou a dar aulas?
Em 2001, no Colégio das Doroteias no Linhó, em Sintra. Eles precisavam de um professor de Educação Visual; eu morava em Sintra, então perguntaram-me se queria. Eu tinha 21 anos e decidi experimentar, mas nunca foi algo que me passasse pela cabeça. E, quando comecei a dar aulas, gostei muito. Senti que, se desenhasse mais, seria melhor professor de desenho. E, portanto, comecei a desenhar cada vez mais. Há aqui uma relação muito direta. E, por começar a desenhar mais, começaram a surgir mais oportunidades de trabalho – ilustrações para livros, viagens para desenhar… É uma espécie de bola de neve.
Sei que tem um site, o Urban Sketchers. Para quem não conhece, em que consiste?
Os Urban Sketchers são uma comunidade de pessoas que gostam de desenhar em cadernos. Desenham o seu dia-a-dia e, como tal, é muito despretensioso. A ideia não é fazer grandes desenhos, mas desenhar quotidianamente o dia-a-dia. O grupo que existe em Portugal é uma filial do grupo internacional, que surgiu em 2009 por um espanhol, que é jornalista. Este jornalista imigrou para os Estados Unidos, começou a trabalhar no The Seattle Times e começou a desenhar o seu dia-a-dia para sentir a cidade como sendo sua. Um dia, propôs ao editor que as suas reportagens tivessem desenhos em vez de fotografias. O editor aceitou e foi um grande sucesso. Isto, em 2007; o grupo português, em 2009. Ele conhecia pessoas que já desenhavam em diferentes cidades do mundo inteiro e, então, lembrou-se de que era muito interessante ter um site ou um blog, onde pessoas de diferentes cidades pudessem partilhar desenhos e contar pequenas histórias sobre as suas cidades. «E que nome é que vou dar a isto?»: Urban Sketchers. Pronto, surgiu assim o grupo. Em Portugal, as pessoas começaram a participar também.
Tem cerca de quantas pessoas? Tem ideia?
O grupo português tem entre 300 e 500. É difícil saber ao certo. Este grupo partilha os desenhos online, encontra-se, de vez em quando, para desenhar, recebe convites de câmaras municipais. Às vezes fazem-se exposições, outras vezes fazem-se catálogos. É um grupo muito inclusivo, com pessoas de diferentes idades e diferentes formações. Procura colocar mais pessoas a desenhar.
Portanto, só para contextualizar, em 2009, fui eu e o Eduardo Salavisa que criámos o grupo; neste momento, já não sou eu que estou à frente do projeto, pois estou na associação internacional, na parte da educação. Temos outras pessoas a liderar o grupo.
Na página dos Urban Sketchers está uma citação muito interessante: «Nunca encontrei ninguém completamente incapaz de aprender a desenhar». Acredita mesmo nisto?
Sim, o Ruskin diz que, no desenho, o segredo está na persistência. Quando entrámos para a escola e começámos a desenhar as letras, também não foi fácil e tivemos de insistir muito; até chegar a um momento em que temos a nossa própria caligrafia. Com o desenho é a mesma coisa. No início, não é fácil e sentimos alguma frustração por não estar a correr bem, mas, quando esses bloqueios começam a desaparecer, facilmente começamos a desenhar coisas. Eu acho que a única diferença é que, tal como toda a gente pode aprender a escrever, mas apenas algumas pessoas fazem poesia, no desenho há quem consiga criar algo que sensibiliza mais.
Estava há pouco a dizer-me que o facto de ter começado a desenhar mais fez com que tivesse mais oportunidades. Assim sendo, de que forma surgiu o convite para ilustrar a obra «Lisboa: o que o turista deve ver», de Fernando Pessoa?
Essa é uma história muito engraçada. Para este editor, eu já fiz outros dois trabalhos do Fernando Pessoa – um do Livro do Desassossego e outro d’O Guardador de Rebanhos – e é preciso recuar ao primeiro livro. Ele contactou-me por email, disse que queria fazer um trabalho comigo do Livro do Desassossego e eu, como estava cheio de trabalho na altura, disse que não tinha tempo e que ia recomendar duas pessoas. Enviei os links para os sites, ele viu, voltou a escrever-me e disse: «olhe, são bons, mas eu quero mesmo é trabalhar consigo.» Então, eu disse que, naquele momento, não tinha tempo, mas que, se ele me desse um ano para fazer o trabalho – e não eram muitos desenhos –, aceitava. Fiz o meu orçamento, ele aceitou esperar e fiquei o tempo que foi necessário a fazer o trabalho. Depois desse livro, surgiu outro. Este de Lisboa também tem uma história engraçada. Ele ofereceu-me uma edição e disse: «Mário, leia e escolha o que quer desenhar da Lisboa de agora, para conviver com as palavras de Fernando Pessoa de há quase 100 anos atrás.» Eu li o livro, fui escolhendo sítios, chegámos a uma pré-seleção de 70 desenhos, ele pediu mais alguns e, no final, ficámos com quase 100 desenhos. Foi um livro que me ajudou a redescobrir Lisboa. Também foi engraçado descobrir que sítios de que Fernando Pessoa fala já não são os mesmos; por exemplo, o Palácio Foz era um clube noturno, com muita vida.
Inicialmente, a exposição era para ficar no Museu dos Coches até ao final de janeiro, mas prolongou-se devido ao interesse demonstrado pelas pessoas. Estava à espera desse feedback tão positivo?
A exposição ainda está lá! Eles, entretanto, pediram para prolongar até ao final de março, mas eu comprometi-me com a Fnac do CascaiShopping a levar alguns dos desenhos para lá – cerca de 10. Agora, no final de março, o Museu escreveu-me a perguntar se podia prolongar, que quer muito lá ficar com a exposição. Eu disse-lhes que podia ser, desde que pudesse tirar 10 para levar para a Fnac. Eles aceitaram e agora não sei até quando lá ficará. Há uma hipótese de a exposição ir para o Brasil, em Porto Alegre, no Sul. Mas como o Brasil agora está uma confusão com o Governo e a Dilma, não sei quando será. Mas, se surgir essa oportunidade, aí, de facto, a exposição sai do Museu dos Coches.
E estava à espera desse feedback?
Sinceramente, não. Este trabalho demorou um ano a fazer, porque eu desenho sempre no local e no inverno é mais complicado. É um trabalho que me diz muito, mas a minha visão é sempre parcial. Mas é muito interessante, pois há pessoas que vêm ter comigo e dizem que gostaram imenso de um determinado desenho e até nem é dos meus preferidos. Mas é porque também se relaciona com uma história que a pessoa tem.
Nessa obra, Pessoa revela o seu amor pela capital. Também sente esse amor pela cidade? O sentimento mudou desde o início até ao final do trabalho?
Sim, definitivamente. Muitos dos sítios eu não conhecia, mas muitos conhecia e, mesmo esses que conhecia, nunca tinha desenhado. E o desenho obriga-nos a parar e a olhar com atenção. É muito diferente da fotografia, que é um clique rápido. O desenho é uma construção; vamos, linha a linha, construindo o que estamos a ver e isso permite-nos observar cada detalhe. A nossa memória guarda essa imagem com muito mais rigor. Nesse sentido, em viagem, o regresso a Lisboa é sempre especial. Fez-me descobrir uma Lisboa ainda mais cativante. Lisboa tem esta luz especial, há bom tempo, o estuário do Tejo é grande e a luz que bate no Tejo volta para a cidade. No desenho tem de se mostrar isso, esse jogo de sombras e de luz. Parar, em tantos sítios, para desenhar Lisboa faz valer a pena.
Referiu, há pouco, as viagens. Sei que tem um livro de viagens, de onde surgiu?
Sim, o Costa do Marfim. Tem também uma história engraçada. Foi um trabalho que eu fiz para os missionários da Consolata; eles têm uma editora, precisavam de fazer capas para uns livros que queriam editar e pediram-me para fazer esse trabalho. Fiz quatro capas para eles e, quando chegou a altura de me pagarem, eu disse: «e se, em vez de me pagarem em dinheiro, me pagassem com uma viagem a uma das vossas missões lá perdidas no meio de África?» Eles acharam a ideia interessante e, então, fui eu e a minha mulher, a Ketta, que também desenha. Estivemos numa missão no norte da Costa do Marfim, numa aldeia perdida, a desenhar. E a ideia era só essa. De facto, há muitas histórias e a realidade é muito diferente se ficarmos lá uns dias ou se ficarmos um mês. De repente, as pessoas começam a ser-nos familiares e aquele pedaço de terra torna-se também nosso. Então, ficámos na missão e, ao fim de três semanas, os padres de lá começaram a perguntar o que íamos fazer com os nossos cadernos. Dissemos que não íamos fazer nada, que iam ficar lá na prateleira para mostrar aos amigos. E eles disseram que devíamos pensar numa edição, porque o que estávamos ali a fazer ajudava a que outras pessoas conhecessem o local e o trabalho que se faz ali.
Isso é interessante. Porque, como foi escrito sem ser pensado como um livro a publicar, torna-se mais próximo das pessoas. É uma escrita mais intimista.
Sim. Eu achava estranho as pessoas virem perguntar-me como é que a minha mulher tinha perdido 7kg lá e eu só pensava: «Mas como é que eles sabem isto?». E rapidamente me lembrava: «Ah, está escrito no diário.» Era uma escrita mesmo pessoal. O livro, depois, foi selecionado para um prémio em França – um festival de diários de viagens – e ganhou o prémio. E nós achamos que tem que ver com essa autenticidade da escrita, porque, quando escrevemos, estávamos a escrever para nós. O livro é muito puro, nesse sentido.
Quão importante é o desenho?
Eu acho que o desenho é um dos melhores instrumentos que temos para conhecer o que nos rodeia. Cada vez mais acho isso, porque estamos numa vida muito elétrica, neste corre-corre desenfreado. O desenho obriga-nos a parar e há poucas coisas que nos obrigam a isso. Para mim, é impensável sair de casa sem o caderno para desenhar; mais facilmente deixo o telemóvel. Há dias em que não desenho, claro, mas levo sempre o caderno. Eu diria que o desenho é a melhor forma de conhecer o mundo. Acho mesmo.
Mário Linhares despede-se e, com o passo lento e a serenidade a cobrir-lhe o rosto, mistura-se com o ritmo acelerado da Capital. De caderno na mão, diz: «vou aproveitar para ir desenhar.».