“Quem diabo é este Deus que, para enaltecer Abel, despreza Caim?”
“Caim”, lançado em 2009, foi o último livro publicado por José Saramago e um dos seus trabalhos mais controversos. Laureado com o Nobel da Literatura em 1998, o escritor ribatejano nascido em 1922 sempre viu a sua escrita envolta em numerosas controvérsias, que em nada afetaram a sua maneira de ser ou de escrever. Por isso mesmo, Saramago mudou-se para Lanzarote, nas Canárias, talvez para fugir de todo o criticismo de que era alvo em Portugal, talvez por a sua personalidade literária requerer um lugar inóspito e refugiado de tudo o resto para poder criar. A verdade? Pouco importa, tanto para mais quando estamos perante um verdadeiro monumento da literatura portuguesa, cujo principal tópico de escrita era a reinvenção de “monumentos” da História nacional: “O Ano da Morte de Ricardo Reis” (1985), “A Jangada de Pedra” (1986) e “História do Cerco de Lisboa” (1989). Este espírito crítico do autor para repensar o passado não se limita ao que é nosso: profundamente ateu, Saramago propôs-se escrever um novo Evangelho, “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” (1991), onde se reconta a Bíblia, mas da perspetiva de Jesus Cristo, um homem não divino que se revolta contra o destino, a divindade e os fundamentos do cristianismo. É também este o tema do livro que nos traz aqui hoje.
“Quem diabo é este Deus que, para enaltecer Abel, despreza Caim?” Esta é uma das frases mais importantes e que resumem a essência o livro. Em “Caim” falamos da história desta personagem bíblica, filho primógénito do primeiro Homem e Mulher, Adão e Eva, irmão de Abel. Diz o livro Génesis que, um dia, Caim e Abel, após a expulsão dos seus pais do jardim do Éden, foram fazer oferendas a Deus para mostrar a sua gratidão. Caim, como agricultor, ofereceu os frutos do solo que cultivara e Abel, pastor, ofertou a Deus a ovelha do rebanho que mais amava e Deus favoreceu a oferenda de Abel, por ele ter posto mais fé e amor na sua oferta. Caim sente-se preterido e fica com ciúmes do irmão e, por isso, atrai-o para uma armadilha e mata-o, cometendo o primeiro assassinato da história da Humanidade. Por ter cometido tal atrocidade, Deus sentenciou-o ao banimento daquela terra, além de ser condenado à condição de errante pelo mundo, que parte em busca de um futuro indefinido num deserto de homens. Caim recebe ainda uma marca, que o identifica como filho de Adão e protegido por Deus, para impedir que seja morto e obrigado a cumprir a sua sentença de errante. E é a partir deste ponto que a nossa história ganha um novo rumo. Caim sai da terra onde vivia e parte para cumprir a sua penitência.
Ao longo do seu caminho, vamo-nos deparando com várias situações e episódios bíblicos conhecidos, como a destruição de Sodoma e Gomorra, o sacrifício de Isaac, a construção da torre de Babel e outros. Neste livro encontramos um dos melhores exercícios de Saramago da liberdade crítica e de análise, onde tudo é posto à prova, tudo é questionado. Deus não é Deus. Deus é deus, com minúscula, assim como minúscula é a sua consciência e o seu poder. Deus não é Pai, deus é carrasco e “deus é uma merda”. O autor não poupa as críticas à religião e ao que está instituído, mas fá-lo de forma mordaz, audaz, inteligente e nada gratuita. Não é um livro para os mais desprevenidos, porque, se foi escrito por um ateu, não foi escrito por alguém inculto. Saramago sabe muito bem do que fala e, talvez por isso, consegue escrever de forma exemplar sobre um tema que é dogma e que por isso lhe trouxe tanta polémica.
Qualquer um que se aventure na escrita peculiar de Saramago, mas que não tenha a devida preparação, será esmagado pela obra. Apenas alguém com uma elevada cultura religiosa poderá compreender “Caim” e “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” e absorver tudo o que a obra tem para dar. Não é um livro para os mais incautos nem para os mais sensíveis, mas é um livro para quem, crendo ou não, gosta de saber e não se contenta com uma versão dos factos. E, se eu vou ouvir a minha religião ser criticada, ao menos que o seja pela mão de quem sabe.