Literatura

Entre o sonho e a realidade (e o absurdo)

Imaginem acordar sem o vosso nariz…Levar as mãos à cara e no lugar dele sentir um espaço plano, liso, raso. Gritavam? Ficavam em pânico? E agora imaginem chegar à rua e ver o vosso nariz, aprumado, bem vestido, como se nada fosse, a passear pela rua. Conseguem imaginar algo tão descabido!? Pois bem, é exatamente isso que acontece em “O Nariz” de Nikolai Gógol!

O texto foi escrito durante o tempo em que o autor viveu em São Petersburgo e foi publicado pela primeira vez no ano de 1836 na revista Sovreménnik [«O Contemporâneo»], fundada e dirigida pelo poeta russo Aleksandr Púchkin. Púchkin era um grande admirador de Gógol e incentivou o escritor a publicar este conto, que, pelo cariz do seu conteúdo, já tinha sido recusado anteriormente. Inicialmente, Gógol concebeu a história como sendo um sonho, mas foi Púchkin quem propôs alterar essa parte. E ainda bem que o fez!

“O Nariz” decorre em São Petersburgo e relata duas histórias, que, embora paralelas, se cruzam. Uma é a de um oficial, o assessor de colégio Kovaliov, cujo nariz sai da sua cara e ganha vida própria. A outra é a de um barbeiro, de seu nome Ivan Iákovlevitch, que dá de caras com o nariz de Kovaliov. E, como se não bastasse, Ivan Iákovlevitch é, nem mais nem menos, o barbeiro de Kovaliov!

O conto divide-se em três partes. No primeiro capítulo, o autor conta a descoberta de Iákovlevitch e as tentativas do barbeiro para se livrar do nariz. Na segunda parte é narrado o encontro de Kovaliov com o “nariz emancipado” e as peripécias da sua demanda para recuperar o olfato: perseguições de fiacre, classificados de jornal e ameaças por correspondência, tudo em prol do seu precioso nariz. A última parte, como podem imaginar, oferece-nos o final…E eu não o vou revelar.

A história tem várias interpretações possíveis. Alguns afirmam que o conflito apresentado na narrativa representa a experiência de Gógol com o seu próprio nariz, que era conhecido por ter uma forma estranha; outros veem a história como uma crítica à sociedade russa do século XIX.

Pessoalmente, esta última interpretação faz mais sentido: na história, o nariz, enquanto foragido, vestindo um traje de oficial, apresenta um estatuto social superior ao de Kovaliov. Ora Kovaliov, antes de perder o nariz, era muito vaidoso, mulherengo e tinha imenso orgulho em mostrar a sua posição social; porém, quando se vê privado de cheirar, o pânico e a vergonha apoderam-se dele ao andar na rua ou a tentar abordar o nariz. O facto de as suas faculdades olfativas estarem desaparecidas ameaça a possibilidade de adquirir mais poder e estatuto social ou de ter sucesso com as mulheres, por exemplo. Pode dizer-se que, sem o nariz, Kovaliov sentia-se como que emasculado, impotente. Por outro lado, o nariz também pode representar o snobismo de Kovaliov: a perda do nariz é a perda da sua identidade.

Mas não nos podemos esquecer da contextualização histórica. No século XIX, no Império Russo, ainda vigorava uma espécie de tabela que orientava a ascensão a cargos públicos. Os cargos presentes nesta “tabela”, promulgada por Pedro, o Grande, em 1722, nos primeiros anos do Império, tinham por base a meritocracia, estando acessíveis a toda a população; não só a nobres, que eram uma minoria, mas também a camponeses e a pessoas da cidade. No conto, de um momento para o outro, o nariz de Kovaliov ganhou estatuto social, chegando mesmo a suplantar o seu dono. Como podem imaginar, Kovaliov não ficou nada satisfeito, tal como um nobre russo do século XVIII não ficaria ao saber que um camponês tinha uma patente superior à sua.

Interpretações à parte, este conto mergulha nas profundezas do surrealismo e do absurdo. Enquanto leitores, podemos pensar que a história não passa de um sonho. Na verdade, podia mesmo não passar, tendo em conta que a probabilidade de um nariz abandonar o seu senhorio e ter uma vida independente é perfeitamente remota e cientificamente impossível. Mas se, por momentos, acreditarmos que é real, não terá tudo mais piada?

Recomendo. A devorar sem moderação!