Opinião

Assim dá gosto sofrer

É um privilégio sofrer tanto por tão pouco. Confesso-o: eu já sofri. Já chorei, berrei, amaldiçoei a minha sorte.  Já todos sofremos. É um ato involuntário e tão básico quanto a água que bebemos ou as horas que passamos a dormir. Agora há, efetivamente, níveis distintos de sofrimento, quase uma escala, que nos permite compreender e distinguir níveis de dor, avaliando a vida. Como disse, todos já sofremos, todos já choramos por um amor perdido ou sempre desencontrado, pela agonia da desilusão, pela sombra da solidão.

Todos já amaldiçoámos a nossa sorte e desejámos ser outro, rebolámos nas nossas lágrimas, fugimos em nós na busca de um mundo mais fácil de digerir. E, no entanto, diariamente somos bombardeados com realidades infindavelmente piores que as nossas, com dor crua e cruel, dor verdadeira, de quem perde tanto que já não sabe o que é ter. De quem não sofre pois já não há por que sofrer, ou, se começa, jamais parará.

Não estou a dizer que nós, os privilegiados com a possibilidade de ficar tristes com isto e aquilo que não correu como desejávamos, (se porque o carro foi rebocado no mesmo dia em que o telemóvel novo se partiu, ou razões do foro íntimo e sentimental que logicamente não colocarei aqui), não sofremos. Fazemo-lo, e dói. Dói mesmo – simplesmente tal acontece porque somos mais permeáveis a esse buraco que se instala na alma e corrói o nosso coração, pois só sofre quem tem por onde sofrer, e temos tanto. Este é o meu ponto: somos efetivamente uns sortudos por sofrermos tanto por tão pouco. Esse buraco que parece infindável e inesgotável? Só o é graças à benevolência da vida, poupando-nos a feridas as quais nunca vamos sequer compreender, quanto mais perpetuar.

O nosso cérebro acaba por criar uma tolerância à dor, quase uma aprendizagem; ele vai construindo em nós camadas e camadas à medida que nos magoam, de forma a que o próximo embate seja menos penoso. Acaba por ser uma medida de sobrevivência mental, comparável ao músculo que treinamos no ginásio e que vai ganhando robustez e capacidade de levantar cada vez mais peso. A diferença, no entanto, é a de que estas barreiras psicológicas são reações naturais ao impacto que revelam a aspereza da sorte que nos calhou.

Um Estado em guerra possui um exército muito mais bem preparado e com maior capacidade de execução. Agora, isso é bom? Pode ser um tema relativamente polémico, na medida em que há muita gente que acredita que esse tipo de preparação é positiva, tratando-se de uma necessidade irrefutável. (Quase) Ninguém gosta de guerra, mas enquanto houver mal no mundo, então, nós temos de estar preparados para ela. Este pode ser, na minha opinião, um argumento perfeitamente passível de ser equacionado. O mesmo raciocínio se pode aplicar ao sofrimento. Muitos dizem que aprenderam muito mais com o erro, que a dor causada e incrustada foi o que os tornou mais fortes e com melhor capacidade de lidar com a vida com sucesso, e daí obtiveram muita felicidade futura. Agora, para efeitos ideais, se essa pessoa pudesse efetivamente escolher entre não falhar nunca ou aceitar esse sofrimento tendo o mesmo fim, o que aconteceria?

É digno sofrer. É legítimo. É nosso por direito. E é tão bom que assim seja, que as brigas nos doam tanto, que choremos perante uma insignificância como se fosse um acontecimento atroz – só mostra o quão afortunados somos. Claro que não vos peço que parem sempre que estejam nesse lugar escondido e sombrio, onde a vida é a materialização daquele monstro debaixo da cama que nunca realmente desaparece, e consigam em vós olhar-se de fora e compreender a beleza da subtileza desse choro que apenas arranha o coração, que o perfura apenas por este ser mole, ser puro, ser virgem.

Por tudo isto, quando estiverem a ser puxados para esse lado incontornável da desconfiança e autocomiseração, tentem-se lembrar se a fonte vale assim tanto a pena, se existe uma correlação proporcional entre a agonia que vos trespassa e o acontecimento que a despoletou. Se tal não for o caso, então, percam um momento a sorrir, pela sorte que têm, e que os outros não.

É definitivamente um privilégio sofrer tanto por tão pouco.

 

“João Garrido escreve ao abrigo do novo acordo ortográfico”