Quando ateiam o meu fogo
Não sou alguém particularmente sério, como já deu para perceber, mais ou menos. Não levo responsabilidades muito a sério, e prefiro fazer aquilo de que gosto mesmo quando tenho prazos a cumprir. Isso traduziu-se num aproveitamento académico mais fraco, mas consegui sempre ser suficientemente decente. Da mesma maneira, sou uma pessoa razoavelmente bem humorada, e gosto de me armar em engraçado, como também já deu para perceber (espero), mesmo em situações menos apropriadas e quando o tópico de discussão é mais delicado. Muitas vezes falo alto demais com muita gente à minha volta e sou muito pouco discreto quando me pedem para olhar para algum lado discretamente, por exemplo.
No entanto, sou alguém que perde a calma com relativa facilidade, especialmente por ansiedade. Muitas coisas me deixam ansioso: de momento, estou a tirar a carta, e cada aula de condução faz o meu batimento cardíaco duplicar, como de uma corrida de cinco quilómetros se tratasse. Situações sociais também me deixam relativamente ansioso, tal como atividades em cujo sucesso deposito grandes expetativas, como um jogo de futebol no qual eu participe. Dos testes e trabalhos só espero uma positiva, nem que seja à rasca.
Mas há situações que me levam ao limite da paciência, que já não é muita. Situações que são tão estúpidas, ilógicas e/ou injustas nas quais o silêncio é, para mim, uma forma de compactuação tácita. Para alguém que aprendeu a ser tímido e resguardado, por força da minha excessiva vontade e necessidade de afirmação, as situações nas quais me “salta a tampa” servem de desculpa para soltar toda a energia que reprimo sob forma de raiva e revolta. Há muitas coisas que me levam a esse ponto (algo que tenho de controlar), mas a situação que, digamos, “ateou” o meu “fogo” esta semana foi a segunda vaga de incêndios mortais, que ocorreu no passado dia 15 de outubro, e a resposta dos media, da classe política nacional, e da população em geral.
Para que conste, eu nem gosto nem percebo muito de política, mas penso que sou suficientemente inteligente para perceber as intenções de um político em determinada situação e para perceber as implicações éticas de certos e determinados comportamentos. O mesmo posso dizer em relação aos media, mas com uma diferença: visto ser esta a área que estudo, percebo um pouco mais. In a nutshell, eis aquilo que penso ter acontecido: após Pedrógão e o escândalo do SIRESP, a agora antiga ministra da Administração Interna foi escolhida como o “bode expiatório” da tragédia (especialmente após o momento em que é apanhada a chorar na televisão). Desde essa altura até agora, o primeiro-ministro viu-se com “o rabo entre as pernas”, e tentou desviar um pouco a atenção. O presidente da República fez aquilo que apenas ele poderia fazer, ao dar “o corpo ao manifesto”. Foi falar com quem ficou para contar a sua desgraça, e esses agradeceram, com muita lágrima à mistura, tornando-se ainda mais popular (se é que isso fosse possível). Se Cavaco fosse presidente, parafraseando o meu pai, “isto estava tudo engatado”. Os media, por sua vez, andaram empoleirados com uma mão nas costas de Marcelo e outra nas costas das lágrimas e da destruição, puxando também a narrativa contra a ministra da Administração Interna, tal como fizeram outras revelações mais pertinentes, como a falta de estudos do agora antigo responsável máximo da Proteção Civil. Os abutres da oposição, comandados pela líder do CDS, tentaram comer aquilo que restava dos mais lesados pela tragédia a nível político, sobretudo os restos de Constança Urbano de Sousa. A opinião pública divide-se: os de direita culpam este governo, os de esquerda culpam o anterior.
Mas aquilo que parece mais importante fica esquecido. Como é que arde 80 por cento do pinhal de Leiria num dia? Como é que morrem 100 pessoas em incêndios em dois dias separados por 2 meses? Como é que só há incêndios em Portugal e no norte de Espanha naquele dia (ao contrário daquilo que alguns órgãos quiseram mostrar através de um mapa que, manipulado, mostrava incêndios por todo o sul da Europa)? Cadê os arsonistas? Quem são? São tresloucados que atuam sozinhos? Ninguém sabe quem são e os vê a entrar nas áreas florestais? Os dementes arsonistas só nascem em Portugal? Se nascem, não há programas de reabilitação ou outra coisa qualquer? Será que o mais importante é apontar dedos e despedir pessoal? E os media? Acompanha-se o Marcelinho e vê-se qual das velhotas vai chorar e guinchar? E os políticos? É ver quem é que fica mais popular?
Não querendo partir para conspirações (os madeireiros meterem fogo, apesar de o SIRESP ter sido feito durante o governo de Sócrates e financiado por Ricardo Salgado, Zeinal Bava, etc.), isto tudo cheira mal. Uma coisa é certa: os arsonistas são terroristas, e merecem ser tratados como tal. Se forem mesmo pessoas com problemas mentais, há que tentar perceber porque ateiam fogos, tratando-os como doentes e tentar reabilitá-los e compreender os mecanismos psicológicos por detrás dessas tendências. Se os terroristas são uns manda-chuvas quaisquer com capangas pagos para atear fogo a tudo o que é mato para ganhar umas coroas, de forma consciente, com noção dos riscos, era das duas uma: ou arranjavam acomodação no xelindró, para que mantivessemos algum civismo, ou era churrasquinho no Terreiro do Paço, para que tivessem aquilo que realmente merecem. Espero bem que só seja do vento do Ofélia, porque não se admite destruir a vida de tanta gente.