A vida são dois dias?
– Senta-te.
Assim o fiz. Já sabia o que me esperava ou, pelo menos, já esperava o que havia de saber em breve. A cadeira cedia sob o meu peso, como se também ela se sentisse desconfortável das minhas ações, das minhas escolhas.
-Vocês estão com ar de quem me vai dar uma má notícia. Está tudo bem com a avó?
-Sim, ela está bem, nenhuma alteração. Mas não foi por isso que te chamámos assim de repente. Achamos que está na altura de ter uma conversa séria sobre a tua vida, sobre o que andas, ou melhor, sobre o que não andas a fazer com ela…
-Hmmm… Mãe, Pai, sabem que vos amo do fundo do coração, não sabem?
-Sim, não é essa a questão e tu sabes.
-Pois sei, mas só quero que isso fique claro, que as minhas decisões não afetam as relações. Pelo contrário, tornam-se centro do meu universo.
-Nós sabemos…
Seguiu-se um silêncio prolongado, pesado, mas necessário, pois antes de dizer algo importante é necessário arranjar espaço, dar tempo, esperar que as palavras passadas agarrem o tecido da memória e do espaço antes de colocar uma segunda (e derradeira) de mão.
-Filho, eu sei que temos uma sorte imensa em te ter, mas eu e o teu pai andamos sempre preocupados contigo. Já tens 36 anos e não tens uma casa tua, andas naquela sucata velha e gastas todo o teu dinheiro em viagens. Para não falar que não tens nenhuma carreira estruturada, andas a fazer um bocado disto e um bocado daquilo, e eu sei que és bom, que te faz feliz, que consegues viver sem dever nada a ninguém.
-Mas?
-Mas tu vives a vida como se fossem 2 dias. Desculpa, filho, mas é a verdade. Como se o futuro fosse sempre algo imaterial e que apenas interessa o agora e, quanto muito, o amanhã. E isso preocupa-nos muito. Queres viajar? Achamos muito bem. Queres fazer algo do que gostes? Toda a gente quer isso, mas a certo ponto é necessário “crescer” e aceitar um trabalho que te dê garantias. É isso, garantias são fundamentais, pois a vida não são dois dias e tu já não és assim tão novo para não perceberes isso…
Esperei. Deixei sem resistência que as palavras furassem e não me protegi, não ergui defesas. Pelo contrário, aceitei os golpes com amor – são os que mais cortam – e sorri.
-Porque sorris? Isto é uma coisa séria, a vida deve ser levada a sério…
-Têm toda a razão, mãe, pai. Têm mesmo toda a razão. A vida deve efetivamente e irremediavelmente ser levada a sério. Pois é única, irrepetível. E este momento, estes segundos que viram anos e depois décadas? Nunca os voltamos a ter, vêm e fogem no seu próprio ritmo, apenas e só uma melodia contínua e com um fim anunciado. É isso que temos. Uma vida, uma canção, o que quisermos chamar.
-Filho…
Interrompi antes que perdesse a coragem de, também eu, desferir golpes de amor que não iam só cortar, mas rasgar, destruir, romper com a sua realidade.
-Deixa-me agora continuar ou não digo tudo o que quero dizer.
-Ok, nós ouvimos… – respondeu.
– Vocês dizem que a vida são dois dias. Mas, infelizmente, vocês é que levam isso à letra. E não no bom sentido…. Passam a semana em sofrimento, arrastando-se nas vossas rotinas e implorando por esse alívio – o fim de semana – onde o sábado já é domingo e de repente acorda-se na segunda. No fundo, tornam-se em abstinentes da vida e repetem o ciclo dos viciados. Toleram a mediocridade de todos os dias, o trabalho do qual não retiram qualquer satisfação, e o restante, esses ínfimos 5 dias, andam completamente anestesiados, absortos nesse delírio do descanso em que a vida é bela e não há nada que o desfaça. E depois repete-se o ciclo…
Mais um espaço para deixar a poeira da linguagem assentar, entranhar-se em nós e aí ganhar sentido.
– Perdoem-me a rudeza daquilo que digo, mas é o que sinto… Porque tenho tanta pena do esforço heróico que cada um de vocês faz diariamente, de levarem a única vida que têm em nome de “garantias”, em nome de uma segurança completamente aparente e que não vai impedir absolutamente nada… Apenas leva a uma perceção de segurança. Nada mais do que isso, uma almofada psicológica que só serve para afagar a cabeça quando nos deitamos. Mais nada, e o resto do dia? Acham que isso vale não viver durante 5 dos vossos sete dias por semana? Vinte a vinte e cinco dias por mês? É a isso que vocês chamam levar vida a sério?
-Mas filho… Nós.. Nós…- e desata a soluçar num choro profundo em que se ouve a alma a chorar, a ceder ao peso da identificação daquilo que se perdeu e não se volta a recuperar. Ali, naquele momento, ela faz um luto da sua vida, daquilo que sempre quis, mas que nunca se atreveu.
-Chora, mãe, é mesmo para chorar. Não pares, não resistas, assume que isso és tu. Viver é sentir, é existir para lá do politicamente correto e das estradas criadas pelos outros que nos levam a crer que são nossas. Mas os pés são teus, mãe, os pés são só teus e de mais ninguém, são pés genuínos e pés cheios de amor, pés que merecem existir por si mesmo, deixando pegadas na terra e agarrando o pó do teu próprio caminho.
Não aguentei mais – abracei-a. Abracei-os. Fi-lo não apenas porque os tinha magoado profundamente, mas porque tinha aberto uma porta que estava trancada a sete chaves e agora não havia como a fechar. Também eu agora chorava, e o meu pai chorava em parte por nos ver chorar, e o choro tornava-se algo maior, uma ação conjunta e muito superior a nós, um choro pela humanidade. Um choro pelos sonhos perdidos, pelas vidas comatosas que tantos levam por aí sem saber que o fazem ou sem o aceitar. Procuram uma existência moldada pelos padrões da sociedade, como se a comparação fosse a única forma de existir. Existir em função de coisas que se compram e descompram, num ciclo que apenas os leva a querer comprar mais para ser mais, a ganhar mais para ser mais.
Enfim, resta-nos chorar até que alguém nos ouça e talvez destranque as suas próprias portas.
Anexo:
Imagem 1:
- Legenda: A vida são dois dias? (Fotografia: Unsplash)
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- Créditos: Marc-Olivier Jodoin
- Ligação (igual ao anterior): https://unsplash.com/photos/TStNU7H4UEE
- Licença: CC0
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Imagem 2:
- Legenda: A vida são dois dias? (Fotografia: Unsplash)
- Slide link (link da página da imagem): https://unsplash.com/photos/8s1wfA6aB-4
- Créditos: Kira auf der Heide
- Ligação (igual ao anterior): https://unsplash.com/photos/8s1wfA6aB-4
- Licença: CC0
- Ligação da licença: https://creativecommons.org/publicdomain/zero/1.0/
Artigo Revisto por: Ângela Cardoso