Sustentar vícios ou evitar suplícios?
Nas minhas quase duas décadas de vida, já enfrentei várias vezes o constrangimento de ter perante mim um pedinte, que, mais ou menos desalentado, apela à minha ajuda monetária. É um cenário bastante comum, pelo menos nas ruas da capital. Contudo, a sua frequência não facilita a situação. Continuo tanto ou mais embaraçada como na primeira vez em que a enfrentei.
A meu ver, não há maneira fácil de negar ajuda a outro ser humano. A parte de dizer ‘não, desculpe’ não é difícil – o difícil é não ficar a remoer o assunto e a sentir-me culpada de seguida. Claro está que a culpa não é minha, longe disso, mas sinto sempre que podia ter feito algo para melhorar o caso. Isto porque, por mais pequeno que fosse o gesto, poderia ter uma dimensão totalmente diferente para o lesado, ainda que tal estivesse fora da minha compreensão.
Talvez seja hipócrita da minha parte escrever um texto acerca de como me arrependo de não ajudar quando podia meter mãos à obra e fazer algo que efetivamente tivesse repercussões positivas. Escrevo-o não em busca de aliviar a minha consciência, mas como desabafo. Já contribuí algumas vezes, mas não foram suficientes. Não sei qual é o meu critério para umas vezes dar umas moedinhas e outras não o fazer. Será o meu estado de espírito? A maneira como sou abordada? O aspeto de quem me procura?
A verdade é que já tirei do meu bolso para ouvir aquele som das moedas a chocarem umas com as outras, o som da boa ação do dia. Mas parece sempre um ato tão insignificante comparado com aqueles que realmente fariam uma diferença significativa na vida de quem mais precisa. Tenho pena de não dispensar mais frequentemente os meus trocos. A questão é que nunca sei qual a sua finalidade.
Será que os meus dois euros vão para uns pães quentes ou para a posterior aquisição de substâncias ilícitas? Estarei a contribuir para saciar temporariamente a fome de alguém ou para sustentar os seus vícios? Nunca se sabe qual o destino do nosso auxílio e talvez seja isso o que mais nos impede de o disponibilizar em maiores quantidades.
Infelizmente, nos dias que correm, há cada vez mais vigaristas com dificuldades fictícias. Ainda esta semana, enquanto estava a almoçar com os meus pais no Colombo, fomos abordados por uma senhora com o seu bebé ao colo a pedir a nossa colaboração. Mais tarde, quando nos dirigimos para o carro para irmos embora, avistámos a mesma mulher com o bebé, desta vez acompanhados por outras duas crianças e um homem. Nenhum aparentava passar fome ou muito menos dificuldades – conclusões que tirámos depois de os examinar a eles e ao seu carro moderno.
Este tipo de truques faz com que se perca a vontade de ajudar. Como distinguimos quem precisa realmente de ajuda e quem está apenas a extorquir dinheiro para se aproveitar da boa vontade dos outros? Como sabemos se fizemos a diferença no dia de alguém ou se apenas fomos alvo de chacota por parte de quem se limita a troçar do nosso esforço? A decadência dos mendigos tornou-se também a evidência dos decadentes.
Há mesmo quem submeta crianças a esta encenação. Gostava de saber como lhes explicam o procedimento. “Quanto mais dinheiro conseguires, mais brinquedos terás”? Ou será que são mesmo postas a par da vigarice? Não sei, mas qualquer um dos cenários me assusta. Andar com bebés ao colo ou com crianças pela mão, com aspetos desgastados e infelizes para aumentar o sentimento de pena é uma estratégia de marketing cada vez mais utilizada. O que irrita é não saber quando se trata de manipulação ou da realidade.
Quando chegamos ao ponto de se fingirem mutilações e incapacidades, a linha torna-se muito ténue entre o que merece ou não a nossa preocupação. Pensar que existe quem finja ser cego, paraplégico ou doente faz-me perder a esperança na humanidade. Por uns sofrem outros. Há de certeza quem necessita genuinamente do nosso apoio, mas, graças aos impostores, esse apoio torna-se ocasional e raro.
Custa-me bastante ver sem-abrigos deitados no meio da rua – quer faça chuva, quer faça sol. Não encontro reconforto quando me apercebo de que há quem não tenha sequer um teto. Várias vezes ignoro as tabuletas que explicam a sua situação para evitar sentir-me ainda pior. Então quando estão acompanhados por animais reflito acerca do quanto deverão dispensar para os bichinhos, que, mesmo dadas as circunstâncias, escolhem (espero eu que seja uma escolha) permanecer ali deitados.
Só quem nunca andou no metro lisboeta é que não conhece o senhor que deambula pelas carruagens com um chihuahua no ombro. Ele vai tocando a sua concertina enquanto o cão recebe a esmola dentro do balde pequeno que carrega na boca. No entanto, não se trata apenas de um senhor e muito provavelmente também não é apenas um cão. Já assisti à troca de turnos em que os instrumentos – concertina e animal – são passados para o próximo artista. Não duvido que seja um ato popular entre turistas. Quem é que resiste a um cãozinho com um baldinho?
Artistas que merecem o título também os há. Se estiveres na Baixa e não encontrares alguém a cantar, a tocar guitarra ou a fazer malabarismos, provavelmente estás perdido e não estás no coração de Lisboa. Aí, o dinheiro atirado para os recipientes é mais reconhecimento de talento do que esmola. Quem o dispensa fá-lo em modo de aplauso. Não tem uma conotação tão depressiva nem impõe um sentimento de obrigação tão presente. É mais fácil ignorarmos um artista de rua do que um mendigo que vem ter diretamente connosco e suplica pelo nosso contributo.
É este o mundo em que vivemos, que normaliza a existência de extremos de miséria e de abundância. O mundo em que é crescente o número de pedintes pelas ruas, quer estejam estáticos ou quer andem pelos sítios mais populosos. Perto de atrações turísticas, nos cafés mais frequentados, à porta de centros comerciais, na Baixa ou no metro, são cada vez menos os locais livres destes indicadores de pobreza generalizada. O único aspeto positivo a retirar é o de, quanto mais vezes nos deparamos com essa realidade, mais reconhecemos que é isso mesmo: uma realidade. Cada um escolhe o que faz para a modificar. Cada um seleciona as desculpas que lhe permitem dormir à noite.
Revisto por Catarina Santos
AUTORIA
Depois de integrar a maioria das secções da revista, a Mariana ficou encarregue de incumbir esta paixão aos restantes membros. O gosto pela escrita esteve desde sempre presente no seu percurso e a licenciatura em Jornalismo veio exacerbar isso mesmo. Enquanto descobre aquilo que quer para o futuro, vai experimentando de tudo um pouco.