Opinião

A importância de dar um nome às coisas

Eu juro que me esforço para ficar calada. Não consigo mesmo. Se há uns dias escrevia um artigo sem nome, hoje tinha de escrever um que falasse sobre a importância de chamar as coisas pelo nome. 

Um artigo que expusesse todos os problemas que existem nesta sociedade e aumentam o fosso social tomar-me-ia demasiado tempo e, provavelmente, não expunha uma milésima do que realmente se passa neste mundo. Por isso, vou falar pouco sobre aquilo que vejo, oiço, leio e me preocupa muito.

Compreendo que todos passemos por um período de negação sobre seja o que for. Claro que é mais fácil travar uma luta que nos toque diretamente. Sim, Carlos, eu admito que quando me dói a mim é mais fácil lutar, mas não é preciso eclipsarmos as restantes situações só porque não nos fazem tanta comichão.

Já viram a facilidade com que nós branqueámos a história de uma forma literal e metafórica? Por norma, fazemos com a humanidade o que fazemos com as relações: achamos uma versão em que nós fiquemos bem e os restantes que se lixem, independentemente de estarmos a tornar aquela relação numa mentira.

Temos desde “Mas os índios não foram escravizados” até “Os portugueses não vendiam escravos”. Se fizerem muita questão, podemos sempre dar um saltinho ao “Os descobrimentos foram o ponto alto da nossa história, eram tempos diferentes”. Tudo isto são piadas daquelas mesmo hilariantes. E olhem que eu não percebo grande coisa de poesia. Apesar de não ser grande adepta da culpa histórica, não acho que isto sejam factos que caduquem. 

Pensem lá comigo: se continuarmos a achar que a Guerra Colonial fez sentido na altura, tornamo-nos naqueles idiotas que elegeram o Salazar como “o maior português de sempre”. É que isto nem é ser nacionalista, é mesmo ser imbecil. Têm no carro algum autocolante que diz “Angola é Nossa”? Por amor de Deus! Vão colocar “One Love Pedro Álvares Cabral” em t-shirts? Ou escrever um livro com o título “Colonizei Porque Amei”? Talvez um “Jesuítas unidos jamais serão vencidos”? Podem sempre passar de “Ama o próximo” para “Catequiza o próximo”.

A esta altura já se percebeu que isto me irrita e me transtorna completamente. Se não gostasse tanto de ler ou se tivesse vivido no Brasil, não sabia nada disto. Existe um abismo ridículo entre o que se leciona em Portugal e nos outros sítios. Gostava mesmo de saber o que se dá em África. Aposto que ainda descobriria mais atrocidades. 

Vamos por partes. Neste espaço não aceito “Mas não sabemos o que ela(e) fez”, “E a forma como ela estava vestida?”, “Naquele sítio àquela hora”, “Mas sabia ao que ia”, “Sabemos lá nós por que o polícia o prendeu”, “Não temos a certeza de que as coisas foram assim, o vídeo só mostra uma parte”, “Para lhe acontecer isto, aposto que também provocou”, “Se está mal aqui, que volte para o seu país”, “Nunca isto aconteceria com a minha irmã porque ela não é assim”, “Mas essa gente recebe subsídios sem fazer nenhum e só faz mal” ou qualquer outra afirmação digna de estar no Twitter daquele cujo o nome não deve ser mencionado. Ou dos outros dois, o Cocó e o Ranheta, que só sabem manifestar-se, e mal, também no Twitter

Claro, Carlos, tu és “livre” para pensar e agir como queres dentro dos contornos estabelecidos pela lei. Mas será que só existe o “posso”? Eu posso comer uma caixa de chocolates e, se calhar, até me vai saber bem até acabar com eles. Mas, pensando nos efeitos colaterais, talvez não o deva fazer. Isto seria uma máxima elevada a ações e palavras praticadas por mexeriquice. Atitudes de gente pequena e mesquinha.

E há tanta coisa que pode ser feita. Não falo de quadrados em redes sociais, porque não sou grande adepta. Percebo que não queiras estar em manifestações. Também não são sítios que me agradem, muito menos quando estamos no meio de uma pandemia. No entanto, existem outras opções necessárias e válidas, como ler artigos e livros, aprofundar o nosso conhecimento sobre as situações antes de o andarmos a espalhar e tentar colocar-nos no lado contrário ao dos acontecimentos. Saber mais não morde, alimenta a alma. Podemos ainda falar com os que nos rodeiam sobre o assunto, escrever sobre isso, seja onde for. Já dizia o outro: em toda a parte: nas casas, nos carros, nas pontes, nas ruas…”. Repetir essas ideias em todo o lado, ao expoente da loucura. Se pode dizer-se “Amote Jaime” ou “ÉS LINDA FOCA”, um bocadinho de cultura não fará mal.

Por que “temos de defender tudo e não parte”? Esta questão não me entra na cabeça. Estou quase a rachar a cabeça de tanto bater com ela na parede e continuo sem perceber. Se não vês bem, usas óculos ou colocas um aparelho nos dentes? Se há um problema que, claramente, precisa de uma solução, luta-se. Se tiveres os dentes tortos e fores míope, resolvemos os dois, mas nunca no mesmo médico. Ou vocês fazem tudo no mesmo sítio? 

O machismo, o racismo, a xenofobia, a homofobia ou qualquer outra forma de preconceito e intolerância exercidas sobre outra pessoa não existem porque recebem um nome. Percebo que a raça humana está habituada a conviver com estas palavras e ações. Quase tudo o que conhecemos já tinha um nome quando chegámos a este mundo. Até as figuras imaginárias: unicórnios, sereias, fadas, pais natais, sociedades igualitárias, políticas equitativas… 

Engraçado que lá por termos uma palavra para uma coisa não significa que esta exista. Ou já viram um Pégaso? Logo, o que vos leva a concluir que o preconceito existe porque lhe damos um nome?

 Aqui está o ponto fulcral da situação: a coisa que mais me irrita no meu livro favorito é o facto de, apesar de ser de 1949, se adaptar à situação que vivemos hoje. Irrita-me que já se ande a lutar pelas mesmas coisas há tanto tempo e se ache que isso “faz parte”. Até porque “vão sempre existir pessoas preconceituosas”. Se continuarmos com este pensamento e traçarmos uma linha que distancia o “nós” do “outro”, vão mesmo. 

É por isto que se ensina filosofia na escola. E é preciso ser muito burro para não prestar atenção a uma única aula, Carlos. Se namorasses menos e passasses as aulas acordado não serias um ignorante deste tamanho.

Se isto é ser um Homem, com uma maiúscula mirrada, continua lá a defender este (ou qualquer outro) tipo de touradas, Carlos. Só para que os nossos netos não tenham de lutar por isto. Ou talvez tenham, mas que seja mais leve. Passinho a passinho a luta chega ao sítio certo.

Artigo revisto por Margarida Saltão

Fonte da imagem em destaque: Revista Cult