Opinião

Em nome da justiça, desculpa, Mariana Ferrer

Nos últimos dias, tem-se dado muita atenção ao caso de Mariana Ferrer, uma jovem que foi violada aos 21 anos por um empresário rico e filho de um famoso advogado. Não me prenderei no facto, infeliz, de este caso não ser algo fora do comum no mundo em que vivemos; apenas me contentarei com o facto de, pelo menos, algum caso estar a ter a atenção do público.

O caso contra André de Camargo Aranha está a decorrer desde 2018, mas apenas depois de Mariana o ter divulgado nas redes sociais é que de facto os “agentes de justiça” – o uso de aspas não é engano, não considero estas pessoas dignas desse termo – começaram a fazer o seu trabalho.

O arguido foi absolvido das acusações sob a alegação de “estupro culposo”, que indica violação sem intenção de violação.

Contrariamente à opinião popular acerca do termo, este não foi criado durante o processo contra Aranha nem indica, legalmente, que a culpa foi da vítima – o que não torna o caso aceitável de modo algum. Contudo, de forma legal, a alegação não existe e o vídeo do julgamento mostra o advogado de Aranha a culpar a vítima. A lógica ilógica usada para ilibar o arguido foi esta:

O termo “estupro culposo” indica o mesmo que violação por negligência, argumentando, neste caso específico, que André de Camargo Aranha não sabia que estava a violar Mariana Ferrer, pois não sabia que esta estava drogada e, assim, incapaz de dar consentimento ao ato sexual (apesar de, alegadamente, tudo indicar ter sido Aranha a drogar a vítima). No entanto, a Lei brasileira não permite que o crime de violação seja punível a termo de negligência. Assim, o arguido é absolvido. 

Apesar de existir um vídeo que coloque Aranha sozinho com Ferrer nessa noite e que mostre que a vítima estaria sob o efeito de algum tipo de substância, um exame médico-legal que comprove o rompimento do hímen (Mariana era, antes de ser violada, virgem), provas de esperma do arguido, depoimentos de testemunhas e um discurso incoerente e com várias versões por parte do arguido, Aranha foi ilibado com apenas a alegação de que não sabia que Mariana estava drogada.

Bom, acho muito improvável que André de Camargo Aranha não soubesse que Mariana estivesse drogada, pois parece-me algo muito fácil de identificar, especialmente sabendo que muitos outros o fizeram. Contudo, mesmo se puxar muito pelas minhas crenças no bem da Humanidade e acreditar que ele não sabia e pensava de verdade que o ato estava a ser consensual, um homem minimamente decente teria ao menos pedido desculpa e impedido que Mariana fosse tratada como foi; ao invés de a culpar e insultar.

É também de comentar o comportamento do advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho, que não foi nem decente nem legal. O advogado mostrou imagens pessoais de Mariana que classificou como “ginecológicas” – vou novamente puxar muito pelas minhas crenças no bem da Humanidade e assumir que não sabe o que significa o termo – e que, de alguma forma que não se entende, justificariam a violação – que, relembremos, supostamente não foi violação. É estranho, não é? Por norma não tento justificar coisas que supostamente não fiz.

Esta atitude foi apenas superada quando o advogado proferiu palavras como: “jamais teria uma filha do teu nível” e “não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso e essa lábia de crocodilo”. Deve saber-se que a liberdade de expressão dos advogados é, pela Lei e pelo seu Código Deontológico, limitada; e, por isso, o facto de ter sido permitido que o advogado continuasse, apenas mostra o caráter corrupto e machista dos presentes “agentes da justiça”.

O caso é absolutamente deplorável e chocante. É uma prova da desigualdade que se vive; é a ilustração para o “porquê?” de as vítimas, muitas vezes, não reportarem o que lhes aconteceu ou demorarem algum tempo para o fazer e é, de uma forma muito cruel, nada que tenha surpreendido as mulheres.

Aquilo que desejaria é que as pessoas começassem a ler notícias destes acontecimentos, que vejam filmes, séries, documentários acerca de violação. Que se possam, como já dizia noutro artigo o ano passado, chocar e que se enojem. Que se sintam tão desconfortáveis que sejam incapazes de ignorar que isto acontece, e muito. E que, assim, não permitam que injustiças como estas se mantenham possíveis.

Mais do que qualquer outro sentimento, fico com um aperto no coração pela Mariana Ferrer, que foi roubada não só de uma primeira experiência sexual positiva e especial, como de justiça para um dos episódios mais traumáticos que alguém pode experienciar. Por isso, em nome da justiça, desculpa, Mariana…

Numa nota irónica, perturbadora e demasiado temática, durante a escrita deste artigo, ligou-me inúmeras vezes um número privado que me tem ligado dezenas de vezes por dia durante vários dias: um homem que não conheço e a quem nunca dei o meu contacto e que me pergunta se estou sozinha e se quero diversão com ele. Apenas parou, porque, num momento de desespero e medo, fiz o que não queria fazer e o que não devia precisar de fazer: pedir a um homem que fale com ele. Apenas um “Estou?” em voz grossa bastou. Claramente ainda temos muito para fazer…

Artigo revisto por Rita Asseiceiro

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