Gaslighting – Uma tortura silenciosa
O termo gaslighting tem ganhado força nos últimos anos, mas o seu significado vai muito além de uma mentira ou da discordância de opiniões, como se tem visto circular pela internet, mais especificamente pelo TikTok. A psicóloga Naomi Torres-Mackie, que trabalha no Hospital Lenox Hill, em Nova York, destacou, numa entrevista à revista Time, o perigo da utilização de termos e conceitos do ramo da psicologia de uma forma banal e sem o devido conhecimento. “Se formos muito rápidos a rotular algo, isso pode dificultar conversas importantes sobre a saúde mental, e cria ideias erradas de um significado pré-assumido”, refere.
Assim, é necessário analisar devidamente a palavra e entender verdadeiramente o que esta implica. Gaslighting é uma forma de violência psicológica, que envolve tentativas de manipulação, para persuadir alguém a questionar a sua sanidade, as suas experiências, memórias e perceção da realidade. O termo originou de uma peça de thriller psicológico britânica, em 1944, chamada Gaslight, na qual o marido manipula a sua esposa para que esta pense que está maluca. Isto ocorre quando a mulher fica sozinha em casa, e o marido muda a intensidade do gás das lâmpadas, numa tentativa de fazê-la acreditar que não pode confiar nela própria nem na sua memória.
Gaslighting é, então, o método de ganhar maior controlo sob alguém. É a realidade da expressão “mexer com a cabeça de alguém”. O gaslighter pode insistir que a vítima comete erros constantes, que as suas opiniões são inválidas, que é uma pessoa mentalmente fraca e quebra por completo a confiança que tem de si mesma, aumentando simultaneamente o nível de confiança ou de dependência em relação ao abusador, por este fazê-la acreditar que é quem está correto e ciente da realidade. Várias afirmações como “és demasiado sensível”, “és maluco/a”, “estás a exagerar” são alguns exemplos do que uma vítima de gaslight poderá ouvir continuamente quando tenta expressar as suas preocupações, de acordo com a psicóloga Naomi Mackie.
Relações abusivas e o perigo do isolamento
Apesar de poder ocorrer em qualquer tipo de interação, o uso deste modo manipulativo tem maior frequência em relações íntimas ou familiares. O grau de intensidade e de perigo do gaslight irá, segundo a Fundação CPTDS (Complex Post-Traumatic Stress Disorder), aumentar consoante o nível de intimidade entre dois indivíduos.
Em relações amorosas, o gaslighting traduz-se numa forma emocionalmente abusiva e é considerado um ato de violência doméstica. Assim sendo, esta prática não tem início desde o começo da relação, mas irá, por sua vez, ser construída ao longo do tempo, de forma a criar um laço de confiança. Isto toma em parte a razão pela qual o gaslighting pode ser irreconhecível durante um grande período de tempo.
Vários estudos mostram que gaslighting ocorre quando alguém usa estereótipos baseados em género e outras desigualdades contra as vítimas. Paige Sweet, professora de sociologia na Universidade de Michigan, foca-se no estudo de violência doméstica e violência baseada em género, e tem participado em projetos que estudam e analisam a fundo os efeitos do gaslighting nas vítimas. Sweet explica como, em relações não saudáveis e com dinâmicas de poder, pessoas que experienciam gaslighting são vítimas também de outros tipos de violência e de isolamento. O gaslighter convence o parceiro de que as suas realizações e outros relacionamentos não são importantes. “Como uma das minhas entrevistadas disse, gaslighting respira no isolamento“, afirma Paige Sweet.
Uma pessoa abusiva pode usar gaslighting de forma a isolar o parceiro ou a parceira, o que cria uma série de problemas. Enquanto o abusador da relação faz a vítima acreditar na sua falta de competências e na sua irracionalidade, a dependência cresce e a realidade da vítima fica moldada à mercê do outro. Cresce um desequilíbrio de poder, no qual o manipulador assume controlo, e a vítima torna-se mais frustrada, nervosa e sem esperança.
Abuso Parental
É importante realçar que este tipo de manipulação pode ocorrer noutro tipo de relações, como qualquer tipo de abuso. Abuso entre pais e filhos é ainda bastante comum, e o gaslight é uma tática recorrente utilizada por pais ou cuidadores abusivos. Como é dito por Robin Stern, co-fundadora do Centro de Yale para Inteligência Emocional e autora do livro The Gaslight Effect: How to Spot and Survive the Hidden Manipulation Others Use to Control Your Life, gaslighting entre famílias ocorre quando a figura parental ou um irmão/irmã mais velho/a tenta debilitar o sentido da realidade e emocional do filho ou do irmão mais novo, descartando as suas experiências e emoções. Este tipo de abuso é considerado particularmente perigoso pois “existe uma vulnerabilidade em não confiar nos seus sentimentos e deixar outra pessoa defini-los. Se não houver uma perceção e um questionamento em relação ao gaslighting, uma criança poderá crescer a pensar que há algo de errado com ela“, menciona Robin. Na vida adulta de uma criança que cresceu num ambiente abusivo e influenciado por táticas manipulativas, a pessoa poderá tornar-se ansiosa, insegura e com maior vulnerabilidade a futuras tentativas de controlo e manipulação, pois torna-se a sua realidade.
Gaslighting, presente em diversos cenários
Tal como já foi referido, gaslighting pode ocorrer em vários contextos e interações. No entanto, há alguns cenários em que esta estratégia se destaca, além dos mencionados.
Gaslighting Racial: No estudo It’s Not in Your Head: Gaslighting, ‘Splaining, Victim Blaming, and Other Harmful Reactions to Microaggressions, de Veronica E Johnson, Kevin L. Nadal, D. R. Gina e Rukiya King, estes autores exploraram a manipulação efetuada a diferentes grupos étnicos ao longo da história e como o gaslighting é utilizado para desvalorizar a experiência destes grupos, fazendo-os questionar a sua sanidade. As pessoas que cometeram microagressões negam a existência dos seus preconceitos, convencendo muitas vezes os alvos destas agressões a questionar as suas próprias percepções da realidade e memórias.
Gaslighting Médico: De acordo com a Fundação CPTSD, este tipo de manipulação ocorre quando um profissional de medicina descarta ou ignora as preocupações de saúde do paciente, fazendo acreditar que este tem sintomas criados “na sua cabeça” ou que o que sente não é importante o suficiente para necessitar de atenção médica.
Gaslighting em Ambiente de Trabalho: Publicado por Priyam Kukreja e Jatin Pandey, o estudo Workplace gaslighting: Conceptualization, development, and validation of a scale, em 2023, foca a manipulação existente no espaço de trabalho por alguém numa posição de poder, como um supervisor ou chefe, sob um trabalhador. Trata-se de uma manipulação comunicativa na qual as perspectivas, preocupações e aflições da vítima são desvalorizadas pelo líder, criando uma sensação de emoções negativas e inseguranças para o trabalhador.
Gaslighting – Efeitos e Consequências
No fundo, gaslighting pode ocorrer em qualquer ambiente e situação de interação. A vontade de descartar emoções e fazer alguém sentir-se incapaz de acreditar em si próprio, de forma a ganhar um senso de controlo e poder, é recorrente e pode levar a danos graves e duradouros.
Gaslighting pode ocorrer por diferentes motivos. As mais comuns sendo a personalidade narcisista do abusador ou a ocorrência deste tipo de manipulação pelos pais do abusador durante a sua infância. A personalidade de alguém que pratica gaslighting com frequência reflete-se em várias características: falta de empatia, necessidade de atenção e de controlo. Podem ainda tentar esconder as suas inseguranças e autoestima, apontando o dedo nas inseguranças e defeitos de outros.
Uma das descobertas mais importantes nas pesquisas feitas sobre abuso psicológico e realçada pela socióloga Paige Sweet, é que os efeitos deste tipo de manipulação são piores para pessoas que não possuem redes sociais fortes ou que não possuem recursos materiais, como por exemplo, dinheiro, que servem como proteções e ajudas. Neste sentido, para a sociedade poder falar sobre saúde mental e bem-estar, é necessário que existam estruturas para apoiar estes fatores. “Quando falamos em crises de saúde mental, crises de abuso psicológico, falamos muitas vezes de crises de desigualdade“, afirma Paige.
Além dos efeitos a curto prazo, como a falta de confiança e de segurança, sensações de paranóia e irracionalidade, sentimentos negativos de imagem pessoal e de autovalorização, o gaslighting pode refletir como um trauma psicológico na vida da vítima e, assim, traduzir-se em efeitos duradouros. Estas vivências e a constante culpabilização da vítima podem dar origem a condições de saúde mental como ansiedade, depressão, isolamento e, em casos que incluam uma junção de outros traumas vividos de caráter abusivo, pode levar a condições mais graves como PTSD e outros transtornos.
É difícil para a vítima, mesmo após o afastamento do seu abusador, conseguir recuperar o bem-estar. Apesar de poder haver um reconhecimento imediato de que aquilo que foi incutido na mente pelo gaslighter é falso e uma tática manipuladora, muitas vezes, a auto-ajuda não é suficiente, e é preciso recorrer a ajuda de terceiros, como amigos e família, e, acima de tudo, a ajuda profissional. Sofrer de depressão, ansiedade e de sentimentos que prejudicam a nossa saúde mental devem ser tratados e regulados.
Obter ajuda para este tipo de abuso pode ser desafiante se a vítima não o conseguir reconhecer. O comportamento abusivo pode não parecer errado ou perigoso e pode haver, até, um sentimento de gratidão pela atenção e preocupação que o abusador mostra ter. Abuso emocional e psicológico é perigoso e não deve existir em nenhum relacionamento. Em circunstâncias mais graves, pode levar a abusos físicos. Por isso, uma vez que haja o reconhecimento de que algo não está bem, é preciso tentar sair da situação de uma forma segura. Procurar e pedir por ajuda é o passo número um. Criar uma lista de espaços seguros, contactos de emergência e um plano para sair de uma forma segura da relação são passos importantes que a vítima deverá tomar. Juntar provas do abuso é também relevante para uma maior credibilidade da experiência da vítima por parte de outras identidades que poderão auxiliar.
Violência psicológica e emocional é um tipo de violência doméstica. Em Portugal, se se sentir em risco, pode ligar para a linha de apoio à violência doméstica, 800 202 148, de uma forma anónima, confidencial e gratuita, disponível 24 horas. A chamada é encaminhada a um profissional de apoio, que poderá informar a vítima sobre os seus direitos e dar apoio psicológico e emocional, enquanto a orienta nas próximas etapas. A APAV é também uma linha de ajuda para conselho legal, emocional e psicológico.
O processo de afastamento do relacionamento abusivo não costuma ser fácil nem rápido, especialmente quando se trata de uma relação com maior intimidade. Contudo, é preciso reconhecer que manter certos relacionamentos construídos com base em abusos de poder e dinâmicas tóxicas podem levar a consequências mais graves e prejudiciais para o nosso bem-estar mental e para a nossa vida.
Fonte da Capa: DeskTime
Artigo revisto por Carolina Rodrigues
AUTORIA
Joana, natural de Vila Franca de Xira, decidiu aos 19 anos estudar jornalismo, como uma oportunidade de descobrir novas histórias e explorar mais sobre o mundo. A arte é um grande componente na sua vida, o que a motiva a escrever sobre o universo dos traços e das cores na ESCS Magazine. Hoje, já no seu último ano do curso, pretende avançar como jornalista multimédia e criar projetos que puxem pela sua criatividade.