Afonso Cruz: “Vejo a escrita como algo que não acaba quando sai das minhas mãos”
Afonso Cruz nasceu na Figueira da Foz, em 1971. É escritor, músico, ilustrador, realizador e fabricante de cerveja. Toca nos The Soaked Lamb, já escreveu mais de uma dezena de livros e garante que as várias peles que veste são todas formas de criação artística. O escritor respondeu às perguntas da ESCS MAGAZINE, e mostrou-se confiante em relação ao futuro da literatura portuguesa.
– Escritor, músico, artista plástico, realizador, … Quem é Afonso Cruz ao certo e como gere o tempo que dedica à criação artística?
O tempo gere-se naturalmente, conforme os prazos e a vontade. Sou músico quando ensaio, gravo ou toco ao vivo. Quando tenho de entregar um livro para publicação, ponho o chapéu de escritor. Na verdade, todo o meu tempo é dedicado à criação artística, não tenho fronteiras entre ócio e trabalho. Quando estou a ler, a ver um filme, também estou a trabalhar — é o combustível da criação. E quando escrevo ou ilustro, porque gosto realmente daquilo que faço, não deixa de ser lazer.
– O músico, o desenhador e o escritor entendem-se bem, ou nem sequer costumam existir em simultâneo?
Fazem os possíveis para se entenderem. Há alturas em que estas áreas se tocam: quando escrevo uma letra para uma música, quando ilustro um texto que tenha escrito, quando faço uma ilustração para um CD ou para a capa de um livro. Nessas alturas, claro, consigo ter uma comunicação privilegiada entre eles, uma integração, e, por vezes, complementaridade, que seriam difíceis de ter noutras circunstâncias.
– Como se deu a sua entrada no mundo da literatura?
Por vezes não é fácil identificar os momentos chave, que aparentemente são uma charneira na nossa vida. Mas creio poder apontar uma altura em que trabalhei como redactor de publicidade. Foi a primeira vez que lidei profissionalmente com palavras em vez de imagens. Comecei, nessa altura, por escrever num blog privado uma série de textos que incluí num conceito, numa espécie de enciclopédia inventada, mas sem qualquer ideia ou pretensão de publicar. Só uns meses depois, quando olhei para todo o material que tinha reunido, me interroguei se não daria um livro. Decidi então enviar para uma editora. Tive a sorte de terem gostado e de terem querido publicar.
– Para além das artes convencionais – falo da escrita, desenho, música e cinema – ainda é fabricante de cerveja artesanal. Como entrou esse ofício na sua vida?
Tenho sempre vontade de saber como se fazem as coisas de que gosto. A cerveja foi uma dessas coisas. Houve também um livro que me provocou alguma curiosidade. Era uma antiga obra de espagíria, escrito por um monge, que dizia que o fabrico de cerveja era uma espécie de escola de filosofia natural. As primeiras cervejas que fermentei foram também para tentar perceber o que este monge tinha dito e o que havia de alegórico no fabrico da cerveja que pudesse ser interpretado filosoficamente. Vivia em Lisboa, nessa altura, há quase vinte anos. Lavava as garrafas e o fermentador na banheira da casa de banho.
– A pergunta incontornável: de onde vêm as ideias para as histórias?
De todo o lado. Do quotidiano, das viagens, de conversas, de livros, de músicas. Não há nada que exista à nossa volta que não seja matéria-prima.
– Quando escreve, preocupa-se com os efeitos que cria no leitor?
Vejo a escrita como uma partilha, como algo que não acaba quando sai das minhas mãos, por isso, sim, preocupo-me com os leitores.
– Olha para as novas gerações como leitores para a sua obra, apesar de, de um modo geral, os mais jovens comprarem menos livros e lerem menos?
Não creio que se comprem menos livros e se leia menos. Cada vez se publicam mais livros, e não faria qualquer sentido fazê-lo se não houvesse gente para os comprar e fruir. Cada vez há mais pessoas sensibilizadas para o valor da literatura e para a importância que poderá ter no seu crescimento profissional e pessoal. Os escritores visitam escolas, bibliotecas, existe um plano nacional de leitura. As bibliotecas estão cada vez melhor equipadas. Hoje em dia, é muito raro entrar em casa de alguém e não haver uma prateleira com livros. Há umas décadas, era tudo bem diferente.
– Como olha para a actualidade literária de Portugal?
Com muita esperança. Acho que têm aparecido excelentes escritores, que têm sabido inovar e arriscar, tanto na forma como no conteúdo e na estrutura.
– A grande maioria das canções de The Soaked Lamb são em inglês. Não sente a entrada da língua inglesa na cultura nacional como uma ameaça ao português?
No caso dos Soaked Lamb, é uma opção que tem a ver com o tipo de música. Sentíamos, no início, porque tocávamos música popular americana, que não ficava bem o português. Talvez por falta de hábito, mas para nós era o mesmo que ser fadista e cantar em sueco. Não há nada de errado nisso, mas é algo a que não estamos habituados e, por isso, saía “esquisito”. Porém, fomos perdendo preconceitos desses, também porque a nossa geografia de influência foi mudando, e fomos incluindo músicas cantadas em português, bem como outras línguas, já que tocamos também versões em italiano e castelhano.
Especificamente em relação ao inglês, não o vejo como uma ameaça ao português, mas tenho pena de que se tenha tornado uma língua franca. Seria mais justo e adequado se tivesse sido criada uma língua artificial para o efeito. Realizaríamos o sonho de Zamenhof, mesmo que não usássemos a língua que ele criou, o Esperanto, mas outra com um pendor mais universalista e que não fosse baseada somente em vocábulos europeus.
Todas as sociedades evoluíram porque souberam integrar o “outro” nas suas vidas. A grande vantagem do nosso presente é a possibilidade de termos acesso facilitado a outras culturas, podendo assim recriar a nossa. Não tenho qualquer receio de que isso possa fazer perder identidade. Pelo contrário, é precisamente isso que forma a identidade. Fomos criados pela mistura de diversas culturas e só evoluiremos se o continuarmos a fazer.
– No que diz respeito à literatura, o que podemos esperar de si num futuro próximo?
Continuarei a publicar e a aumentar a série Enciclopédia da Estória Universal. Estou neste momento a acabar um romance e tenho mais uns livros ilustrados prontos a serem publicados.
AUTORIA
João Francisco Gomes nasceu em Leiria, a meio da década de 90. Interessa-se por música, sobretudo por fado, música portuguesa, música erudita e música sacra. Gosta de tocar vários instrumentos musicais. Interessa-se por literatura, gosta de escrever e lê quase diariamente.