Tu e eu, Jeff
De tempo em tempo, temos a sorte de nos cruzarmos com artistas cujas músicas nos tornam em pessoas diferentes. De tempo em tempo, descobrimos canções que nos descrevem melhor do que qualquer livro o possa fazer. De tempo em tempo, ouvimos vozes incomparáveis a qualquer outra, que mexem com cada nervo do nosso corpo.
Todas essas sensações apoderaram-se de mim quando descobri Jeff Buckley. Lembro-me bastante bem do dia: estava no meu décimo primeiro ano e enquanto fazia zapping pelos canais da minha televisão, deparei-me com o vídeo da cover “Hallelujah”. A partir daí apaixonei-me pelo tom melancólico e suave de Buckley. Não desperdicei tempo até ouvir a discografia dele e conhecer quem era este homem.
Naquela altura, estava nos meus tempos de Heavy Metal, Rock e Punk, ou seja Accept, Judas Priest e Green Day eram as bandas que estavam em rotação no meu Ipod. Por isso, descobrir alguém que abordava a música com tanta delicadeza e argúcia foi algo bastante importante para mim.
Felizmente apercebi-me de que não fui o único a sentir estes sintomas: as melodias folk-rock, acompanhadas por elementos de Soul e Rock fizeram com que milhares de pessoas se rendessem à voz deste artista tão enigmático.
A verdade é que independentemente do mistério que Buckley deixava transparecer na sua vida, a música sempre foi um elemento constante. Os seus pais eram ambos músicos: Tim Buckley, músico folk, que introduziu o filho ao jazz, e Mary Guibert, uma pianista e violoncelista com formação clássica. Nos seus tempos de adolescência, descobriu cedo Led Zepplin, Jimi Hendrix e The Who. “Toda a minha vida cantei a acompanhar o rádio. A minha mãe costumava cantar para mim também. Íamos de carro para a escola com o rádio ligado, a tocar coisas melodiosas, desde Joni Mitchell, Crosby Stills & Nash a Bob Dylan”, contou Jeff numa entrevista à revista de música Mojo, por volta de 1994.
Foi num tributo ao seu falecido pai, na igreja St. Ann, em Brooklyn, que as atenções se viraram em torno do artista. Após vários ensaios com Gary Lucas – músico conhecido pela sua colaboração com Captain Beefheart – Jeff atuou acompanhado pelo guitarrista, e começou ali uma relação que iria marcar decisivamente o seu futuro.
“Convidei-o para vir até ao meu apartamento, em Greenwich Village, para trabalhar numas canções do pai. Limitei-me a ligar a guitarra, comecei a tocar e o Jeff contou o resto da história”, relembrou Lucas.
Os dois músicos começaram a atuar em vários clubes e cafés em Nova Iorque e produziram juntos grandes êxitos da carreira de Buckley, como “Grace” e “Mojo Pin”. Eventualmente, Gary Jones pediu ao cantor para se juntar à sua banda, na altura chamada “Gods And Monsters”: “Pedi-lhe imediatamente para se juntar à minha banda porque procurava um vocalista. Ele adorou a ideia e, sem hesitações, disse que sim”, continuou. Contudo, pouco tempo depois, Jeff telefonara a Gary e diz-lhe que está de saída a fim de começar uma carreira em nome próprio. A partir daqui, Jeff Buckley queria tomar as suas decisões e seguir o seu próprio caminho.
O lançamento de “Grace”
Jeff não queria ser famoso ao ponto de a sua fama lhe roubar a intimidade – algo que o cantor tanto preservava. O receio de a sua vida privada ser notícia de capa de revistas era aterrorizante e nunca imaginaria que as suas escolhas profissionais fossem determinadas pelas frivolidades da sua popularidade. Contudo, isso não o impediu de seguir em frente e pensar no ponto principal da sua carreira: o seu álbum de estreia.
Para gravar o disco, Jeff Buckley não queria formar uma banda composta por músicos escolhidos aleatoriamente; queria as pessoas certas, que, para além de o ajudarem com a realização do trabalho, também pudessem ser os seus amigos, os seus companheiros para o resto da vida.
E assim começou o árduo caminho para realizarem o primeiro álbum de estúdio, intitulado “Grace”. Com a ajuda do baixista Mick Grondahl e do baterista Matt Jonhson, foi em setembro de 1993, em Nova Iorque, que as gravações se iniciaram. Buckley sabia perfeitamente o som que queria e era muito exigente nesse aspeto; assim, recrutou alguém em quem confiava: Andy Wallace, produtor responsável pelo brilhantismo de “Nevermind”, dos Nirvana.
Para além de temas originais – já mencionados anteriormente –, Buckley queria prestar homenagem a outros vocalistas o lhe influenciaram e, com certeza, deixaram a sua marca no estilo do cantor. Por isso, covers de “Corpus Christi Carol” (de Benjamin Britten), “Lilac Wine” (de James Alan Shelton) e “Hallelujah” (de Leonard Cohen) ficaram no alinhamento final.
No dia 23 de agosto de 1994, “Grace” foi lançado mundialmente, através da gravadora Columbia. O álbum recebeu críticas extremamente positivas e muitos jornalistas musicais consideraram-no como um dos álbuns mais influentes da sua geração. A revista Rolling Stone adicionou-o à sua lista de melhores álbuns de todos os tempos, defendendo que “Buckley tinha a voz de um anjo, e as músicas aqui torcem-se de modo a brilhar cada vez mais”.
Em termos comerciais, o álbum não teve grande sucesso: chegou ao número 149 nas paradas americanas, vendendo poucos exemplares. Só começou a lucrar após a morte do cantor, acabando por vender ao todo cerca de dois milhões de cópias pelo mundo inteiro.
Nos dias de hoje, “Grace” é visto como uma obra-prima vinda dos anos 90. A devoção de Jeff à sua arte e à sua música era tão obsessiva, que acaba por ser quase derradeira. A sua intensidade transparece uma visão de alguém cheio de mágoa, dor e paixão por aquilo que queria fazer. Numa entrevista à revista Juice, por volta de 1996, Jeff Buckley descreve o seu disco de estreia como algo incontrolável, inevitável e necessário: “Grace é… muitas coisas ao mesmo tempo. Não consigo descrevê-lo concretamente. É apenas uma série coisas acerca da minha vida”.
Com um álbum tão cativante e envolvente, a música de Jeff foi disseminada pelos quatro cantos do mundo, fazendo com que o cantor embarcasse numa tournée mundial. O artista passou, assim, o ano seguinte ao lançamento de “Grace” a viajar pelo mundo inteiro com o objetivo de promover a sua discografia. Começou na Austrália, passou por festivais no Reino Unido, Ásia e concluiu com espetáculos na América.
Em concertos esgotados e festivais preenchidos, foi editado o primeiro álbum ao vivo do cantor, que relembra os melhores momentos dos concertos de Jeff. A compilação chama-se ”Mystery White Boy” e foi lançada em Maio de 2000 (depois da morte do cantor).
29 de Maio de 1997 (verbos no passado)
Fará, em 2016, 19 anos que Jeff Buckley desapareceu. Foi em 1997, na cidade de Memphis, no estado do Tennessee, que Buckley, acompanhado pelo seu amigo Keith Foti, marcou uma sessão num estúdio próximo com intensões de gravar o segundo álbum de estúdio. Contudo, os dois não conseguiam encontrar o paradeiro do edifício e decidiram descansar ao pé de um rio. Aí, o cantor, sempre muito confiante das suas capacidades, resolveu entrar nas águas do Wolf River, mantendo as suas botas calçadas e a roupa do dia-a-dia vestida. A escolha preocupou Keith Foti, e este avisou-o várias vezes de que poderia ser algo arriscado, mas os seus atos foram em vão. Ao pé deles, tocava num rádio a música “Whole Lotta Love” dos Led Zeppelin.
Keith Foti tentou afastar o rádio para evitar que fosse danificado pelas ondas provocadas pelos barcos que por ali passavam. Por sua vez, quando este se vira, já não conseguiu encontrar Jeff. Naquela altura, só as luzes da cidade iluminavam as águas escuras do Wolf River. O pânico do amigo ocupou o seu corpo e este correu pela cidade gritando por auxílio.
O corpo do cantor foi sucumbido prematuramente pela natureza à sua volta. Graças às ondas fortes que caracterizavam o mar, o corpo de Jeff foi descoberto só seis dias depois.
A partir deste momento, o mundo inteiro encontrava-se de luto pelo artista.
“You And I”
Guibert, a mãe que tem agora 67 anos, recorda a carreira que o filho teve e que poderia ter: “sou uma pessoa que vê as coisas pela positiva, e olhem para pessoas que a música de Jeff influenciou. Com todo o respeito aos responsáveis da indústria musical, eles – a Columbia Records – não conseguiam criar este tipo de agradecimento vindo do mundo inteiro, especialmente como eu tenho sido tão poupada em deixá-los fazer tal coisa”, continuou.
Com o falecimento de Jeff Buckley, várias compilações, discos ao vivo e EP’s foram lançados com o seu nome. Mas não nos esquecemos de que antes da sua morte, os trabalhos para o segundo disco estavam a decorrer.
Na casa que alugou durante a sua estadia em Tennessee, não tinha mais do que uma cadeira, um gravador de quatro pistas, as suas guitarras e um colchão. Tudo isto, na sua opinião, era o essencial para construir um sucessor digno de “Grace”.
Por esta altura, o medo que atormentava a cabeça de Jeff foi a sua fama crescente. Obviamente que o cantor gostava de ter milhares de pessoas a apreciaram a suas canções, mas a exposição que a sua vida privada teve, levou a procurar refúgio nos escombros daquela cidade americana. “Não quero estar ‘à mostra’, porque eu não sou assim. Isto tudo é apenas uma experiência individual. Sinto-me feliz por as pessoas gostarem da música em geral, mas ela não é a cura para o cancro”, comentou o cantor numa entrevista à revista Juice, em 1996.
A morte de Jeff foi definitivamente inesperada para todos os que lhe eram mais próximos. A teoria de suicídio foi posta em cima da mesa, mas a sua mãe negou tal possibilidade. Muitos amigos afirmavam que ele estava numa das melhores fases da sua vida.
Consequentemente, o segundo álbum – que recebeu o título “My Sweetheart the Drunk” – chegou a ser lançado, não como Buckley entenderia, a 26 de Maio de 1998. Foi apresentado ao público como um disco-duplo composto por músicas originais, muitas no seu estado demo, outras já propriamente finalizadas. Entre elas, “Everybody Here Wants You” e “The Sky Is a Landfill” são as mais conhecidas entre os fãs.
O legado do cantor é indiscutível. O seu curto tempo na indústria musical deu para mostrar ao mundo o talento irrefutável de Jeff Buckley. Continuaremos a celebrá-lo e a vivê-lo. E o mais recente exemplo é a nova compilação que chegará às lojas no próximo dia 11 de Março: “You and I”. Nela constam maioritariamente covers que o Jeff fez ao longo da sua carreira, como “Everyday People”, dos Sly and the Family Stone, e “I Know It’s Over”, dos The Smiths – remasterizados como os dois primeiros singles.
Para além destas, também podemos encontrar covers de Bob Dylan, Bukka White, Led Zeppelin, Jevetta Steele, Louis Jordan e His Tympany Five, juntamente com dois temas originais, escritos pelo próprio: uma versão inacabada de “Grace” e “Dream of You and I”.
O destino e a morte haviam de ditar que Jeff Buckley se transformasse num mito contra a sua própria vontade. O seu notório percurso deixara a sua marca para sempre na música e na nossa memória. A história deste rapaz gracioso será contada como um assombro de várias maneiras, pois o primeiro capítulo começou na noite que a personagem principal desapareceu.